37x18 Pequenas falhas no espaço-tempo

Imagem: TingTing Huang

Caro Hans,

eu ia escrever teu nome aqui. Quase cheguei a escrevê-lo de verdade.
Queria que você lesse.
Queria que você soubesse o que tenho a dizer.

Meu Deus, eu estava sentada no sofá, mil coisas na cabeça, pensando em cozinhar camarões
E, de repente, eu não estava mais aqui.

Era maio.
E você estava lá, segurando suas coisas, e me dizendo o que fazer.
Eu queria escrever aqui o que você disse, palavra por palavra
mas essas palavras são minhas
e eu não quero que ninguém saiba sobre elas.

É tudo o que eu tenho.
Então eu tô sentada feito um fantasma, olhando meu eu passado,
deslumbrado
o coração batendo tão forte que tô ouvindo o barulho
e não posso fazer nada

Ela hesita, por um segundo
E eu prendo a respiração,
eu quero mudar o final desse filme
eu quero escrever uma história nova, uma fanfic nova

Mas eu só posso olhar.

Eu só posso olhar e perceber que já era tarde demais àquela altura dos acontecimentos
Pela maneira como ela se inclina,
como ela sorri
como ela fala

E eu tô com o coração pesado
Cheia de vontade de dizer a ela
De dizer o que acontece no fim
De dizer o que acontece depois dos créditos

Tô treinando meu discurso,
eu preciso que ela confie em mim, acredite em mim
Ele vai partir seu coração.
Ele vai te cortar em pedacinhos.
E você não vai conseguir recolher sozinha.
E eu ainda nem sei se você vai conseguir recolher.

Ela dá risada
coloca o cabelo atrás da orelha
passa a mão no rosto oleoso
uma quantidade excessiva de rímel
ela usa um vestido.

Tento reunir as informações,
coisas nas quais ela acreditaria,
invocar o nome de Otto,
eu preciso usar todas as armas possíveis, eu preciso
eu preciso me salvar de se tornar isso

Eu preciso economizar as lágrimas
eu preciso me salvar desse exato momento
eu preciso me salvar da dor infinita
e do pavor que eu sinto toda a vez que acordo ao lado de alguém
eu preciso me salvar
dessa sensação
do cheiro de fracasso
eu preciso me salvar

Reúno toda a minha coragem,
todas as minhas palavras
respiro fundo
tão fundo
e levanto a minha voz,
me faço enxergar

- B.?

Ela olha pra mim, assustada.
Tomo fôlego pra começar a explicar,
pra contar toda a história
mas percebo
que isso já aconteceu antes
quando ela
me diz
- Tá tudo bem. Eu consigo. Tudo bem se tudo desandar depois. Tudo bem.

Assim como eu vim,
muitas de mim virão.
Eu queria sim, arrancar o mal pela raiz.
Voltar até lá e dizer não.
E ir pra casa.
Ir pra casa.
Mas eu nunca vou pra casa.
Eu sempre escolho ficar.

E isso vai me perseguir
isso vai me assombrar
pelo resto da vida

Porque não importa quantas vezes eu volte até lá
eu sempre vou escolher ficar e lutar.

Então eu volto pro hoje, pro agora
e enfrento a dor
de acordar todos os dias de manhã
com um pouquinho mais de coragem, um pouco mais de paciência
porque o que aconteceu em maio, em janeiro, agora
foi o que eu quis que acontecesse,

Agora, paciência.
Maldita paciência.

0 comentários: