Imagem: TingTing Huang
Estava organizando as temporadas, ao invés de estudar, de explicar pra minha irmã como é que uma camisinha vai parar no quarto de alguém, de ler meu livro ou fazer qualquer coisa útil, quando me deparei com o terrível dia jamais descrito. Eu decidi, há um tempão, que jamais escreveria sobre ele porque não sabia como.
Acho que doía, também.
Acho que incomoda, um pouco, o que quer que isso queira dizer.
Mas não tenho medo da dor ou do incômodo.
Vamos lá, vamos terminar essa temporada com bravura. Vamos quebrar regras.
24 de julho de 2015.
Eu estava lá.
Acordei cedo, voltei pra casa bem cedo, como nunca tinha voltado antes.
O dia todo era bonito, eu ouvia o álbum recém saído do forno da Florence, e fingia que não estava indo ver se a gente tinha volta.
Não me lembro da minha roupa naquela manhã.
Roupa de dirigir.
Lembro de usar meus óculos de coração, os cor de laranja, e de pensar que o mundo inteiro queimava.
Eu não sabia o que ia acontecer naquela noite. Sabia o que queria que acontecesse. Mas não tinha coragem de imaginar. Eu tinha muito medo.
Eu tinha muito medo de chorar.
Estava doente.
Digo isso porque agora me parece muito nítido, mas eu não percebia, então.
Trazia na bolsa um monte de sudokus e palavras cruzadas, que me acompanharam durante algumas das piores fases da vida, como um lembrete de que, quando tudo está ruim, eu sempre podia fugir pra dentro de mim.
Arrumei meu cabelo. Na época, estava em transição, meus cabelos estavam furiosos, eu me sentia a medusa, cachos tortos, em desalinho, como se alguém os tivesse dado vida própria e os congelado em seguida.
Eu usei azul.
Azul é a minha cor favorita, às vezes.
Blue.
Caiu bem.
Eu queria ficar bonita, mas bonita feito uma pessoa comum em uma tarde comum.
Penteei os cabelos, usei maquiagem, mas não tanta, porque queria parecer que estava ali só porque tinha que ir.
Fiz o caminho mais cedo, eu queria esperar, eu queria estar lá quando você chegasse.
Sentei no deck, e fiquei olhando o pôr do sol, esperando você chegar, com medo da sua chegada, com medo do futuro, com medo da falta de estrelas pra quem pudesse pedir, com medo de não saber o que pedir.
Você chegou e, olha, você estava lindo. Nossa.
Eu estava de novo, desajeitada, meio maluca, sozinha, escrevendo em papéis e nos cantos dos sudokus, trazendo um presente sem pacote, uma caixa cheia de mim e das coisas que eu não pude te dar. Cheia de amor sem sentido, sem destinatário.
Deixei que você lesse, eu queria que você lesse, era seu, não era? Mas não era mais.
E foi uma droga perceber que não era mais.
Porque ainda tinha amor ali, ainda tinha amor em mim, o que eu ia fazer com aquilo??
Pra quem eu ia dar, se não pra você?
Soco no estômago, saímos pra comer, de acordo com o que eu planejara.
Eu precisava de tempo, ficar estável, peguei meu carro e fui pelo caminho mais longo e mais familiar que conhecia.
Eu precisava ficar estável, eu precisava não sentir nada.
Eu precisava respirar fundo e não te querer mais, eu precisava que você me quisesse, eu precisava--
Chegamos ao shopping, mas não entramos de mãos dadas, não teve sorvete e nem você me deu bronca por alguma razão boba. Fingi que estava diferente, em uma tentativa desesperada de te fazer voltar, mas hoje acho que isso não fez, nem faz diferença.
Comi carne, e estava ruim, mas eu não reclamei.
Conversamos.
Sobre coisas amenas.
Coisas amenas, eu e você, conversando sobre coisas amenas, uma morte lenta.
"Não, não, não, tá errado. Me fala da tua casa, da tua vida, da saudade que você sente de nós dois, vamos pra minha casa, dorme comigo essa noite e a gente resolve tudo amanhã, volta pra mim, volta comigo pra sua casa, eu te faço o café da manhã e a gente começa do zero, a gente finge que nada aconteceu, eu nunca mais discuto por coisas pequenas, eu não vou mais brigar, eu não vou mais ficar indecisa, eu vou ser melhor, eu vou--", era o que passava pela minha cabeça. Mas eu nunca disse, eu nunca diria, eu sou a mulher mais orgulhosa que já andou por essa terra, e até isso me orgulha.
Então eu sorri, e falei com a minha voz estável. Eu fui estável. Porque era o que eu achava que deveria ser.
E tinha tanta coisa que eu queria dizer, que eu queria cobrar, que eu queria te dar, e a minha estrela, e tudo aquilo que a gente ainda ia fazer
mas eu não tinha voz, nem bravura
nem nada.
Eu só tinha o meu orgulho, pra me manter de pé, pra me fazer te soltar quando a gente se abraçou uma última vez, pra me levar pra casa, pra minha casa, não pra sua, pra me tomar o celular quando eu só queria escrever tudo o que estava entalado na minha garganta, me apertando o peito, pra colocar o colchão na sala porque entrar no quarto e ver as coisas de nós dois espalhadas doía, pra me abraçar e dizer que ia ficar tudo bem, mesmo quando eu sabia que não ia ficar, pra me fazer cafuné enquanto eu chorava pela primeira vez, oficialmente.
Meu Deus, como foi horrível aquele dia, terrível. Parece tolo, agora.
E nem de longe tão ruim quanto os que vieram depois.
Mas ruim.
E não sou insensível a ponto de dizer que o seu também não foi ruim. Deve ter sido, tão ruim quanto. Mas acho que nunca vou saber.
O que sei é que esse foi o meu dia terrível.
Não o primeiro, não o último, mas especialmente terrível.
Como todos os dias terríveis.
Se eu teria feito algo diferente?
Tudo, eu diria, mas não tenho certeza.
Porque eu realmente gosto de azul.
E eu realmente gostava desse cara, mas
Eu sei que as pessoas imaginariam que eu diria que deveria ter deixado o orgulho de lado, mas ele me trouxe até aqui.
Ele me manteve de pé,
me fez comer quando eu não queria,
pentear meus cabelos, ir pra aula fingir que estava tudo bem, tirar notas boas,
falar com meus amigos, nem que fosse pra responder "Tudo bem sim :) e você?".
Ele me abraçou e me impediu de pedir ajuda, é, mas também me impediu de tomar atitudes drásticas, de dizer o que sabia que não adiantava ser dito e de ficar em casa chorando as pitangas.
Então, eu mudaria o dia terrível?
Talvez, possivelmente.
Mas provavelmente não.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
0 comentários:
Postar um comentário