48x05 The end of the world as we know it

 

Imagem: TingTing Huang

"Você vai morrer em breve", ela me diz, olhando as linhas da minha mão. 

- Que bom, eu respondo. 

Ela treme, mas não esboça expressão. 

É o fim do mundo, lá fora. Ou pode ser, ou espero que seja. 

E eu, Macabéa, saio feliz com a profecia, que eu preciso que se realize. 
Vou pra casa, organizar minha mala, deixar meus bilhetes. 

No caminho, compro um sorvete de menta. 
Mas não tomo. 
E se eu tomar? E morrer engasgada? 
Me assusto. 

Respiro. 

Tomo o sorvete. Uma colherada de cada vez. 

No caminho de casa, atravesso na faixa de pedestres, um carro para quase em cima de mim. 
Homem estúpido! Não vê que estou atravessando?

Escurece e eu ando cada vez mais depressa. 
Atrás de mim, ouço passos que quase me alcançam, meu corpo todo se arrepia e eu tremo, e penso em correr, ao mesmo tempo em que paraliso. 

Ele me alcança, e é agora, eu sei que é, me viro, em pânico e

É uma mulher e ela passa por mim, depressa, e segue seu caminho na direção de um futuro que, 
felizmente, 
não existe pra mim. 

48x04 Mirror, mirror on the wall

 

Imagem: TingTing Huang

Aceno, feito Sofia, e espero que a imagem no espelho acene de volta.

Sou eu, é o outro?

A mulher no espelho me persegue, me observa. 

No escuro, ela está lá, presa? Ela existe quando não existo?

Fora do enquadro, o mundo existe inteiro no espelho que fica no canto do quarto? 

Apago as luzes e, mesmo assim, ouço, ou quase ouço ou imagino que ouço a sua respiração, imagino-a embaçando o espelho, o outro lado. 

O outro eu, o outro dentro do espelho, Alice, quem é você?

Você é feliz? Que espaço ocupa no universo e o que você deseja? Você tem o que eu desejo? Eu tenho o que você deseja?

Dizem que, quem quebra o espelho, tem 7 anos de azar pela frente. 
Se eu quebro, e você desaparece, vira parte de mim? Como atravesso? Eu quero atravessar?

Cutuco seus dedos com os meus, e nos juntamos por um instante, sob a superfície gelada. 
Mágica. 

Finjo que trocamos de lugar, que existo dentro do seu universo, e respiro. 

Pela primeira vez, eu saio do lago de Narciso e eu sou eu. 
Tiro a cabeça da água e somem as guelras, eu sou você, e só consigo ser eu se eu for você. 

Nós nos olhamos, sob a mesma superfície, enfim. Duas de nós, no mesmo lugar. 
E isso não é possível, sabemos. 
Não é natural. 

Eu sei o que eu faria. Logo, sei o que você vai fazer. 
E você não surpreende: empurra a minha cabeça no lago, com força, e segura, enquanto eu me debato, luto e luto pra sair, pra respirar, sem sucesso, até aceitar, 

e afundar. 

Early Cuts: Das coisas que se quer

 

Imagem: TingTing Huang

"Eu quero morrer e, com todo o respeito, vocês não deixam, passam remédios e remédios e não me deixam fazer o que eu quero", ela diz. 

O que desejamos?

A força motriz da vida é a busca pelo objeto desejado que nunca se pode alcançar porque, quando se alcança, então
então o quê?

Eu sou, eu existo apenas na jornada. 

O pote de ouro no fim do arco-íris, se existe ou não, importa? 

O que acontece se eu chego à cidade Esmeralda e encontro, no lugar do grandioso mágico de Oz, apenas um homenzinho, fumaça e espelhos? 

Eu quero, e devo querer, mas nunca posso alcançar. 

Não querer a jornada é desejar a morte?
Chegar ao fim da jornada é encerrar assim, a pulsão de vida? 
Mas com sucesso?

Existe felicidade ou só a busca?

E, nos extremos, fatalmente, na saída e na chegada, inevitavelmente, a morte do prazer de existir? 

Meus telômeros desfiando feito o novelo de Ariadne, fios longos cor de carne que vão me guiar num labirinto cada vez mais emaranhado, intrincado, e vazio e sufocante, 

A jornada da Besta e a jornada do Herói se fundem ou entram em conflito, puxando, puxando, sempre na mesma direção do fim. 

Mas 

E se eu não quiser ir e nem voltar? 

E se eu quiser ficar parada no ponto do meio, no limbo entre o não querer e o não seguir,
mas querendo ficar. 
Querer permanecer é querer estar vivo?


Parte II
A falta

Paro no meio da sala. Esqueci algo. 

Não sei o que é, e isso me aflige, me preocupa. 

Te devoro no café da manhã, mas ainda me sinto vazia. 
Eu me alimentei de amor e comida fresca, dinheiro, conhecimento, mas a escassez se sobrepõe ao todo. 

Ou o segredo da vida é entender que
Não, corrijo, não existe um segredo da vida. 

Mas, talvez, compreender a existência e permanência da escassez como força motriz para o alvo do desejo seja mesmo de grande importância. 
A escassez pode ser medida? 
Existem níveis de escassez? 

Como se apresentam?
De forma biológica, nos hábitos? 

As regras da jornada são ditadas à época da formação da pulsão de vida? 
Como num jogo da vida em que se escolhe a profissão logo no início, sem volta. 

48x03 Under control

 

Imagem: TingTing Huang

6mg, 3 dedos de água filtrada pra manter a fiação intacta, impulsos elétricos e íons com cheiro. 

Seu gosto de sono, cheiro de casa, dias estranhos esses, tão ruins e caóticos, 6mg resolvem tudo o que há pra fazer, o dito e o não dito?

Durmo, sono intranquilo, meia boca, perambulo pelo limiar entre o sonho e o não sonho. 

Evito usar a palavra "real" porque o sonho às vezes é mais sólido do que a rotina que se impõe, quente e seca. 
Arenosa. 

Fico em suspenso, 6mg. 
Olho no espelho e sorrio. 
Sorrio. 
Sorrio. 
E sempre estou triste. 

Eu me sinto cor de chumbo, cianótica, enfumaçada. 
Sacrifico Leda no altar, em busca de -
Em busca de mim, eu suponho. 

Abro meu coração, mas não figurativamente, eu o abro e devoro, e sussurro segredos noturnos, passo a entender a linguagem de Oceano. 

E defeco, evacuo sangue, mas não o meu. 

Olho pro outro e não me vejo, só me vejo no espelho, e me odeio por isso, por não ser o outro. 

No meio da floresta, encontro meu duplo, a quem busquei com tanto afinco, a quem eu quis tanto ver. 
Corro pra ele, e o abraço, e o beijo, e juro amor eterno e etc etc e quebro o seu pescoço, sem hesitar, nem mesmo por um instante. 

E, enfim,
me sinto em paz. 

48x02 Motherland

 

Imagem: TingTing Huang

Diga a coisa como ela é. 

Leio sobre mim mesma numa página do DSM, sobre nós. Sobre como é crescer sob a sombra protetora e sombria de mulheres-salgueiro. 

De criança, somos alimentadas com leite fraco, sangue forte e brasas de fogo, feito abelhas operárias. Os meninos, maná e leite e mel, que jorram da terra. 

Somos primogênitas e, portanto, devemos sempre carregar os sacos mais pesados, os maiores baldes, sem parar para descansar. 

Todo mês, sob a lua cheia, nos banhamos em sangue e lama e entoamos cânticos sob o olhar atento das estátuas vivas de mulheres que conhecemos ou que vamos conhecer. 
A lama entra em nossas narinas e seca, endurece, mas não nos movemos. 

Eu não reclamo, eu não choro, eu não posso chorar. Eu só posso aguentar até o fim. 

Endureço, por dentro e por fora, presa na lama, sem conseguir falar, sem conseguir gritar. E, sabendo que, se pudesse, não o faria. Não diria nada, não gritaria, jamais pediria ajuda. 

É preciso sair sozinha, ou perecer. Sinto dor, sinto coceira, sinto a lama queimar meus olhos e narinas, o corpo todo preso numa forma de mulher que eu ainda não sou. 

Sinto que vou morrer aqui, que vou morrer assim, à míngua, como tantas antes de mim. E eu não quero morrer assim. 
Eu não quero morrer assim. 

Mas não sei como sair, só sei que 
Eu não quero morrer assim. 

Early Cuts: Behind the curtains

 

Imagem: TingTing Huang

Cochichamos. 

Você é pequeno, magro demais, cabeludo demais. 
Acho que sou um pouco mais alta, braços longos, cabelos revoltos. 

Escondidos atrás das cortinas, esperamos, pacientemente, até que venham nos procurar. 

Lembro do seu cheiro de suor e salgadinho, meu cabelo grudando no pescoço, pés encostando no azulejo gelado. 

Alguém passa bem perto, chamando nossos nomes, e isso assusta. 

Odeio pique-esconde, a tensão, a corrida, a taquicardia que chega a machucar meu esterno, o medo de correr; prendo a respiração, em pânico. 

Você, sisudo, uma criança de 100 anos, só espera, pacientemente. 
Por fora, calmo, mas consigo ouvir seu coração bater bem alto, e

48x01 The 30th

 

Imagem: TingTing Huang

Cara Ulrika, 

Como vai você? Espero que bem. Viva, saudável. 

Não tenho pensado em você, mas tenho pensado. 
Muito. 
Tenho 30 anos e me sinto muito jovem e muito velha. 
Muito por fazer, por decidir. 

Eu já não quero conhecer o mundo, e nem conquistá-lo. 
Eu amo, e sou amada. É complicado, às vezes. Mas é bom. 

Sempre achei que saberia o que fazer, mas novas incertezas teimam em surgir todos os dias. Sinto medo, todos os dias, e essa sensação terrível de que tudo é incontrolável. 

No espelho, meu reflexo me conta coisas que não compreendo. Tenho a impressão de que tudo o que vai acontecer está a um passo de distância, e isso me paralisa. Faço parecer que caminho, mas não: estou parada, inerte, mal respiro. Tudo, como sempre, é muito. 

Às vezes, quero dormir. Um sono longo, acordar em 5, 10 anos, tudo pronto, decidido, caótico. 

As semanas, cada vez mais longas, com menos dias bons, e a sensação de que nada tem significado. 
Ou, talvez, tudo tenha significados demais. 

Tudo tem história, um cheiro, fumaça e espelhos, o som das vozes, a falta do meu pai que não me desejou feliz aniversário (de novo), tudo tem que querer dizer algo?

Uma vez você me disse que existir doía. 
Nossa, como dói. 

Tenho 30 anos e me falta ódio. 
Eu sou toda, inteira, tristeza. 

30 anos, e ainda me sinto como um projeto inacabado, mal ajambrado e pintado com pouca tinta. 
Pai e mãe me montando o rosto, o corpo, ligando e desligando, testando componentes, até ficar assim, um protótipo de... 
De quê?

Uma máquina, ainda pouco refinada. 

Fecho os olhos e tenho esse desejo consciente, recorrente, de correr. 
Não corro nunca, saiba disso. 
Tenho medo. De iniciar a ação e nunca mais parar. 
Dar a volta ao mundo. 
Chegar aqui, séculos depois, em pedaços. 
Enferrujada, sem memória alguma, seguindo só esse desejo primordial que eu ainda teimo em ter. 
Correr. 

Não sei porque te escrevo, Ulrika. Nem sei onde você está, se se importa. 
Só queria que fosse diferente, entende?

Feliz aniversário pra mim, 
de mim.


Com amor, 

B. 


47x22 Pappenheim (Season Finale)

 

Imagem: TingTing Huang

- Você me quebrou?, eu perguntei a ele
- Não, B., nunca. Eu te consertei. 

Estávamos sentados num banco de pedra. Era bem cedo, estava frio. 

Lembro das nuvens, da grama. 
Das cores. 
Do vazio. 

Passávamos horas sentados, em silêncio. 
Eu sempre me sentia péssima, exausta. 

Meus pensamentos eram muito frágeis, fios e linhas finas de fumaça que eu tentava agarrar pra formar palavras e frases e algo (sem sucesso).

Ele me perguntava coisas, mas elas nem sequer chegavam ao lugar onde nasce o entendimento. As palavras batiam feito pássaros em vidros e caíam aos seus pés. 

Voltávamos ao quarto e eu comia, tomava remédios, dormia, acordava, comia, tomava remédios, dormia, acordava. 

Aos poucos, os dias tornaram-se semanas, e as semanas tornaram-se meses, meu cabelo cresceu novamente e as marcas da contenção desapareceram, e eu permanecia dócil e vazia, uma tabula rasa. 

E ele vinha e me fazia perguntas e me dizia coisas e contava a história de mim, sobre mim. Uma história de raiva e de medo que eu não reconhecia mais. 

Ele me mostrou cicatrizes de arranhões, dentes, hematomas em absorção, no próprio corpo e no de outras pessoas. 
- Não sei, não me lembro. 
E não era mentira. 

Ele vinha, diariamente, mesmo nos fins de semana. Sentava-se no jardim e falava, enquanto eu não ouvia, em silêncio. 
Ele falava, até cansar. E depois escrevia, até cansar. 

Eu nunca li o que ele escrevia. Não me interessava, à época. 
Nada interessava. 

Lembro de sentir-
nada. 
Absolutamente nada. 
Eurídice, atravessando o submundo em completo silêncio. 

E ele teimava, com suas palavras bonitas, sua lira feita de lítio, em me forçar a atravessar. 
Como se fosse sobre ele. 
Tudo era sobre ele, até eu era sobre ele. 

Por meses, eu não disse uma palavra sequer.
O ar entre nós se enchia de tensão e o sufocava, enquanto eu assistia, sem sentir nada. 
Eu até sentiria, se pudesse. Mas era incapaz de sentir, e de existir fora da órbita das criaturas destruidoras de universos. 

E, assim mesmo, ele teimava em me envenenar, com agulhas e palavras e pílulas amargas e preparados que me embrulhavam o estômago.
Ele queria me ouvir gritar, mas eu não tinha mais força pra evocar um grito. Desaprendi o que era dizer, pensar, sentir. 
Mas ele queria me ouvir gritar, então não parava. Dia e noite, ele tentava invocar a Besta, mas ela já não existia. 

Dentro de mim, só existia o silêncio, e ele não sabia ainda que eu queria dizer algo por meio da ausência de som. 
Ele buscava, frenético, transformar a Besta em Mulher, mas eu já era Nada, muito distante de qualquer uma das duas. 

Depois de meses de silêncio, 
eu falei. 

e, por alguma razão, aquilo o irritou, muito mais do que o silêncio. 
A existência de algo, a existência de alguém dentro de mim, pensante, senciente o enfurecia. E ele demonstrava e lutava uma luta travada no campo do inconsciente, na qual a minha convalescença era o seu grande oponente. 

Ele continuava vindo, impecável, pontual. Camisas sem nenhum vinco, calças perfeitamente passadas e sapatos engraxados, mas, ocasionalmente, um fio fora do lugar, olheiras mais profundas, alguns fios de barba por fazer, uma irritação difusa e a força com que escrevia nas páginas do seu caderno me indicavam que algo estava acontecendo. 

Aos poucos, eu melhorava e, a medida em que o número de comprimidos diminuía, ele tentava me forçar a gravitar seus pensamentos, sem admitir que ele gravitava os meus e que a minha melhora era a cura forçada para a sua obsessão por doença e morte. Às vezes, eu me pergunto se ele sentia medo. Se acordava no meio da noite, apavorado com a ideia de ficar só e ter que olhar para si. 

Haviam muitas como eu, inúmeras mulheres silenciosas, mas "nenhuma como você", ele me disse, certa vez. Eu fazia com que ele se lembrasse. Ele nunca disse o quê. E eu nunca perguntei. 

Na véspera da minha alta, acordei no meio da noite, perturbada por um silêncio que só posso descrever como pesado. Anormal. A ala toda em silêncio. Nenhum choro, nem gritos, nem os passos ocasionais dos seguranças e das enfermeiras. Nenhum carro distante, nem animal noturno. Eu não conseguia ouvir nenhum som, mas eu sabia que ele estava ali, em algum lugar, me olhando. Dentro, ou fora do quarto. Eu quase podia ouvir o seu coração bater. 

Eu não senti medo. Eu tinha essa certeza de que não me tocaria mais, uma sensação de que eu estava completamente fora do seu alcance, sempre estivera. E ele sabia. 

Mesmo agora, ele sabe. 

E espera. Mas eu não volto mais. 

Nunca mais. 

47x21 Escrevo, pra você, uma carta que não vou entregar

 

Imagem: TingTing Huang

Eu só quero saber de escrever, sabe? E isso me preocupa porque sempre associei a escrita a um refúgio, alento, escape. 

Ultimamente, acho que, se pudesse, andaria armada com lápis e caneta e escreveria no ar, nas paredes, nas pessoas nas ruas. 

Eu quero chegar a algum lugar com isso, mas é tudo tão rápido, feito uma canção curta. 

Tô pensando em 2016, eu acho. Ou 2018. 
2018, eu acho. Foi um ano de merda. 

E eu acho que eu que precisava de você. 
Eu não escrevi em lugar nenhum sobre o que você fez. 
Mas eu precisava de você, e você estava lá. 

Eu não sei se você se lembra daqueles dias imundos, sua memória é uma merda. 
Nem eu me lembro bem, graças a Deus. 

Eu só me lembro de falar com você. E de segurar o choro. 
E de escrever muito, nos braços e nas pernas e nos guardanapos. 

Eu me lembro de mais glitter, e das letras das músicas serem menos tristes. 

Acho que eu já te amava, então. 

Mas não me lembro de ser assim. Talvez essa seja uma sensação tipo baseline, com agudizações, entende? 

Talvez seja só entender os fatores de risco e de proteção, aí já era. 

O que eu quero dizer é: você me faz feliz. E triste. E só. 
eu não sei o que é isso. 
Mas eu sinto como se estivesse sentindo tudo de uma vez, sem filtro. 

Dor, e prazer e tesão e tristeza e felicidade e ódio e amor e tudo o que há de ruim (e de bom). 
Parece que vivo o hoje, o ontem, amanhã e daqui a pouco, prendendo a respiração, como se, a qualquer instante, você fosse invadir a sala, quebrando a porta, paredes e telhados. 

Logo você, certo? Que não faz um ruído sequer. 

E, ainda assim, você me deixa quase surda com o barulho que provoca nos meus pensamentos. 
Eu acho, 
mas realmente não sei,
que estou apaixonada. 

Ou doente, mas não sei. 

Eu só sei que tudo bem, por enquanto. 

E eu sinto muito, eu não consigo controlar. Eu queria poder. 

Eu já tentei, mas não consigo. E já nem quero. 

Sabe, pode ser que eu nunca mais me sinta assim. 
Então, obrigada. 

Obrigada por antes, por tudo, e por isso. 

Dói pra porra, mas é mágico. 

Acho que passa, em breve, volta para a baseline, fica aí latente, até eu baixar a guarda. 
Ou não. 

Então, eu realmente sinto muito, mas vou aproveitar, ok? 
Só dessa vez, prometo!

(Se é que eu posso prometer...)

Com amor, 


B. 

47x20 The walls we won't build (out of fear)

 

Imagem: TingTing Huang

De dentro do redemoinho que chamo de lar, eu observo a chuva que inunda a casa, enche de lama, sujeira nova e antiga, traz coisas para dentro que eu não via há muito tempo. Coisas que um  muro, um telhado, impediriam de entrar. 

Junto tijolos, cimento, o que quer que seja preciso, e começo uma obra que finalmente pretendo acabar.

Um tijolo e mais outro. 
Às vezes, a chuva vem e derruba tudo - ou quase tudo. 

Concentrada, forte, firme, eu começo todo dia com vontade de não terminá-lo, com vontade de acabar, evaporar, desaparecer, antes de precisar terminar. 
Mas não paro. Todo dia, eu tento um pouquinho mais, mais alto. 

Às vezes, até parece que vivo só pra construir o muro. E ele fica cada dia mais alto, ultrapassa a minha pouca altura. Sólido, muito mais sólido e estável do que todos os meus relacionamentos, ele se ergue, se impõe. 

Meu muro, minha Torre de Babel. 

Tento falar com você daqui, Píramo, meu amor, mas eu não deixei nenhuma fresta pra trás. 

Continuo construindo, tapando a luz que vem de fora, contendo, aqui dentro, a chama que é só minha. Só pra mim. E abafando os ruídos dos seus gritos, do seu sangue, dos seus desejos absurdos. 

Termino, exausta, a minha construção perfeita, minha obra de arte, meu refúgio. 
Sem possibilidade de invasão, minha muralha. 

Nada entra, 
mas nada sai. 

Por um tempo, parece bom.
Ideal, até. 

Mas aí, começo a sentir calor, falta de ar. 

Sinto como se fosse impossível respirar, preciso respirar. 

Preciso de ar, preciso de luz. 

Preciso de espaço, preciso sair. 

Aliso o muro, meu muro perfeito, erguido com todo o amor, todo o afinco... 

E eu sei
o que preciso fazer. 

47x19 Interlúdio

 

Imagem: TingTing Huang

Ele vem, no meio da noite. 
Death, himself, cavalgando seu cavalo negro, feito de ilusões. 

Invade os meus sonhos e nem mesmo o apanhador de sonhos pendurado na janela é capaz de contê-lo. 

Eu o convido a entrar, mesmo sabendo que preciso acordar cedo. 
Mesmo exausta,
mesmo que me sinta estúpida
e envergonhada. 

Ele sabe, você não acha? 
E, mesmo assim, ele entra no meu cérebro como se fosse o dono do lugar, sujando o piso, deixando marcas de pés e mordidas, morte celular, 
ressuscitando sinapses há muito desconectadas. 

Eu finjo que vou trancá-lo pra fora. 
Mas, novamente, eu o convido a entrar, como se convida um vampiro. 
Só que o vampiro sou eu, que  te convido a entrar na prisão que é a minha cabeça. 

De novo,
e de novo,

até o sangue chegar. 

47x18 Stars unaligned at the gates

 

Imagem: TingTing Huang

Termino o caminho, mancando. 

Você me oferece a mão, o braço, e eu não aceito. 

Eu não quero a sua ajuda, eu não quero que me toque. Eu não quero mais continuar, mas também não quero parar. 

Você, como de costume, não parece cansado de nada. Dias de viagem, batalhas contra orcs, um djinn, ladrões e monstros. 
E você, tranquilo, sempre tranquilo. 

Sento em uma pedra e você examina os portões fechados, atentamente. 

Não tem outro caminho, Sol. Esse é o caminho. 

Você lê as inscrições, em voz alta e em voz baixa, na sua língua mãe. 
Isso me irrita, mas não digo nada. Há dias que não digo nada, só sinto raiva, muita raiva. 
Desde o dia em que enfrentamos o Djinn. 

Você nunca me perguntou o que ele fez nos meus sonhos, ou o que eu vi, o que eu fiz. 
E eu me ressinto disso também. 

Mas também de muitas coisas, coisas que você nem imagina, coisas que ele me mostrou dentro de mim, sobre você, sobre nós. 

Você explica que precisa de mim pra abrir os portões. 
Do meu sangue, do nosso sangue. 
Você explica, animado demais, feliz demais, que é preciso o sangue de 2 grandes amigos, mas só um pouquinho de sangue, então... 

E então você vai estar livre. 
Livre de mim, livre de nós, dessa bagunça que eu criei. 

Atrás dos portões existe um mundo à sua espera. 
Glória. Prêmios. Amor, talvez. 

Você percebe, mesmo sem que eu diga, que estou com medo - por que isso você percebe, e o resto não? 
Senta ao meu lado, me diz que vai ficar tudo bem, pra confiar em você de novo, me hipnotiza do seu jeito e eu me convenço mesmo de que sim, tudo vai ficar bem. 

Você me corta, na palma da mão, e se corta logo depois. 
Tocamos a porta, murmurando palavras mágicas mais antigas do que as estrelas. 
E nada acontece. 

Repetimos, de novo e de novo. 
E de novo
E de novo
E nada acontece. 

Você lê, relê as instruções, confuso e magoado consigo mesmo. 
Eu não digo nada. 

Você repete pra si mesmo e pra mim que a porta só precisa de sangue, do nosso sangue, do sangue de dois amigos.
Só o sangue de 2 amigos. 
Amigos. 

Você toca a palavra mágica e a repete em voz alta como se desconhecesse o seu significado. 
Observo seus ombros caírem quando a percepção do que está acontecendo finalmente te atinge com a força de um saco de cimento. 

A qualquer momento, você vai olhar pra trás, pra mim. 

Prendo a respiração. 

E me preparo pra falar, 
finalmente. 

47x17 Stendhal syndrome

 

Imagem: TingTing Huang

Um turbilhão de luzes e ruídos, acordo, não sei se por causa do frio ou do ruído ou dos pingos de chuva gelados no meu rosto. 

Meu coração bate forte, alto, dolorido. 

Eu tento falar, e não consigo. Não sei onde, nem quando, nem quem eu sou. 

Alguém fala comigo, mas eu não quero ouvir. Eu não quero ouvir, eu não quero falar, eu não quero cheirar, ou tocar. 

Eu quero ver. 
Eu quero ver você. 

Encontro forças, ignoro orientações, eu empurro tudo, eu quero um campo de visão limpo de tudo o que não é você. 

Sentado no chão, eu te venero. Sinto de novo a mesma tontura, a cabeça pesada, e luto contra a sensação intensa, angustiante, o êxtase de estar na sua frente. 

De existir com você. 

A luz e os anos cor de azul cobalto, te tornam ainda mais bonito, e eu tremo, meu corpo todo treme, e eu choro, como se abrisse os olhos pela primeira vez. 

Eu quero me controlar, acredite. Eu estou tentando, desesperadamente, e eu quero dizer a coisa certa, eu quero fazer a coisa certa, me levantar do chão, seguir adiante. Minhas pernas bambeiam e eu torno a cair, então paro de tentar. 

Eu só me sento, e decoro cada detalhe da sua composição perfeita. 
Choro mais um pouco, logo eu, que não choro nunca. 

Coração volta a rasgar o peito, ferve, queima. 
Sinto medo e desejo, medo do que disse um homem sobre uma calopsita, que a vida perde a razão quando você passa por uma experiência tão intensa. Perde o significado. 

Meu peito dói, e minha pele fica úmida de suor gelado, sinto náuseas, e tento desviar o olhar. Mas eu quero ver. 
eu quero te ver, e só você. 

Definho, e não sei mais há quanto tempo estou aqui, esperando, sem saber pelo quê. 

Às vezes, é noite, outras, é dia. Falam comigo, mas não entendo, não quero entender. Eu quero olhar você. 

Sinto, e sei: estou enlouquecendo. A certeza disso me traz alívio, e tristeza, não medo. 
Como se fosse um desses caminhos que a gente trilha sem perceber, fui enlouquecendo, insidiosamente. 

E, agora, me encontro numa encruzilhada, mas não posso voltar, e nenhum dos caminhos me leva à segurança, à sanidade. 

Eu sou o que esse momento, o que você
fez de mim. 

Eu não sei quem eu sou.
E eu não quero saber.

Eu só quero olhar você. 

47x16 01 angry woman

 

Imagem: TingTing Huang

"Você podia ter me escolhido", Eurídice disse. 

Quero dizer, não sei. Talvez ela tenha dito. 
Talvez não. 

Caminho na sua frente e eu quero olhar, eu quero saber, eu quero ver se-

Não sei mais o que é real e o que não é. 

Medito sobre flores novas nascidas do seu sangue, enquanto tento entender se sou ou não um oráculo, e se isso que vejo é dor. 

Penso em mim, em você, em nós. 

E penso muito, até demais, sobre caminhos. 
Aqueles que seguimos e os que escolhemos seguir. 

Você não me escolheu. 
E você podia.
Você pode. 
(?)

Mas aí, você teria que admitir que iria até o submundo pra me encontrar, 
que trilharia todo o labirinto de volta pra mim, 
e que derrotaria pretendentes e os mataria pra dormir ao meu lado. 

Tantas histórias, prosa e poesia, 
eu sou a porra de uma Argonauta, uma constelação. 
Eu sou Vênus e Psiquê, e Atena, e Diana. 

E eu quero, eu te daria de beber no centro da sua tortura, da sua tragédia pessoal, semear dentes de dragão, colher guerreiros e lutar por mulheres e terras e deuses ao seu lado. 

Você só tinha que ter me escolhido. 

mas eu não sou tão

bonita
magra
inteligente
bondosa
agradável
otimista
criativa
falante
desenrolada


branca

quanto você gostaria. 

47x15 The you that loves me in the dark

 

Imagem: TingTing Huang

Acordo no meio da noite e caminho, no escuro, até o seu quarto.
Sento na beira da sua cama e te observo dormir. Febril, você sussurra velhos encantamentos, 2 ou 3 gritos de guerra e o meu nome.

Eu sou o fantasma que te assombra à noite? 

Sou a matéria-prima dos seus pesadelos, como você tem sido a dos meus? 

Quero te acordar, quero que você fique bem.
Mas não acordo. 

Não sei bem o porquê, mas eu não acordo. 

Eu não quero conversar, eu não quero assustar, eu não quero não entender, de novo.
Eu não preciso de mais do que acontece quando as luzes se acendem.
Fico perfeitamente satisfeita, hoje, em ser apenas o fantasma. 

Um fantasma. 

Não quero mais significar nada, eu não quero mais ter que lidar com essa angústia terrível do presente.
Só quero que passe. 

Você esperneia e agoniza, e luta as suas próprias batalhas inconscientes, e eu entendo, agora, que não é meu dever lutá-las por você, ou com você.
Você escolheu isso, milimetricamente. 

Cada peça desse pesadelo organizada com cuidado e carinho pra te ferir.
Você escolheu ganhar ou escolheu ser derrotado, no final. 

Você escolheu tudo, menos eu.

Então, por que eu te escolheria agora? 

Eu espero, em silêncio, pela chegada da manhã, enquanto eu torço por você - seja lá o que isso queira dizer - e, quase que secretamente, espero que esteja lutando por mim. 

Aos poucos, as luzes invadem o quarto, fresta por fresta, e vão se derramando no seu rosto, pescoço, tronco, e vão me alcançando. Tento permanecer, só mais um pouco, eu quero saber quem vence no final, mas não consigo, vou desaparecendo, voltando pro lugar onde os fantasmas talvez existam. 

Eu quero saber, quero saber quem vence no final.

Mesmo sabendo que não sou eu. 

47x14 Tolerância

 

Imagem: TingTing Huang

Começa devagar.
Experimento, uma vez aqui e outra ali.
É repentina a perda de controle, até demoro a perceber o que acontece.
De um dia para o o outro, começo a pensar em você o tempo inteiro, o dia inteiro, toda hora.
Já não consigo mais pensar, não consigo me concentrar. 

Penso em você enquanto dirijo, enquanto despelo uma laranja, etc etc. 

Eu tento parar, tantas e tantas vezes.

Na primeira semana, quando você partiu meu coração pela primeira vez.
E depois, e depois, e depois. 

Sinto um desejo incontrolável, súbito e intenso, marcante, como se você fosse o único do mundo, o último.
E, quando você vai embora, tento preencher o seu espaço como se uma cratera se abrisse no lugar onde você esteve antes.

Sinto dor, taquicardia, ansiedade, carência, medo e tristeza, tudo junto, ao mesmo tempo, no mesmo lugar. 

Mas a pior parte mesmo é precisar sempre de mais.
Eu quero sempre mais.
Eu quero mais de você, eu quero mais que isso, eu quero muito muito mais do que isso.
E, quando conseguir, vou querer muito mais do que você me der.
Cada vez mais, até te destruir por inteiro, até te devorar. 

Até me destruir, por completo. 

47x13 Ophelia, parte 2

 

Imagem: TingTing Huang

Dessa vez: Ophelia drowns in a pool of sorrows and misunderstandings

Mergulho a cabeça, bem fundo. 1, 2, 3 vezes. 

Tô tentando me manter sobre a superfície, mas fica cada vez mais difícil. 

Eu não entendo nada, nunca entendo nada. 

Finjo que isso não importa, mas até esse fingimento me exaure, fico cansada e durmo, um sono raso feito esse lago em que flutuo sem saber pra onde a corrente vai me levar. 

Bebo da taça de um estranho qualquer, a despeito de alguma promessa que fiz, e da qual já me esqueci. 

E quero mais, cada vez mais. 


47x12 Trilha

 

Imagem: TingTing Huang

Um só caminho, ida e volta, parece simples, a princípio.  

Viagem longa, acidentada, potencialmente fatal. Sinto um medo como nunca senti antes, e nem sei se vou, e nem sei se sei voltar. 

Não sei se quero, não sei o que quero, mas tento de todo jeito voltar atrás, voltar no tempo.

Sinto raiva, cansaço, medo.

Não me sinto poderosa ou valente. 

Me sinto só no universo, na estrada instável, sol a pino, no meio do mato e dentro da minha cabeça.

Trilha longa e acidentada, pouco sinalizada e arenosa, pedregulhos pontudos e escorregadios. 

Você nunca disse que sim e nunca disse que não e eu te digo não todo dia enquanto escalo e escorrego, eu me molho e me assusto com a possibilidade iminente de cair no abismo. 

Eu quero cair no abismo. 

Afundo na água cor de mel ou xixi e Ofélia me vem à cabeça, tudo é sempre tão confuso ou eu é que estou confusa, eu é que não sei onde começo e onde termino e onde isso começa e onde termina, uma trilha infinita, um caminho só, disse o homem, ida e volta. 

Setas brancas mostram o caminho mas eu não sei pra onde, se pra perto ou longe, se aqui e agora ou se séculos atrás. Piso em falso, e me levanto, eu chego até o fim, mas o que é o final do caminho? 

E se eu não quiser chegar ao final do caminho, se eu não quiser saber o que tem pra ver de cima do mirante? 

Eles chamam de janela, e eu só quero que seja uma janela pra ver o que acontece depois e o que tem depois do caminho. 

Vou e volto, ou tento, mas a estrada não tem nenhum tijolo amarelo, e ninguém me oferece sapatinhos escarlates. Tudo é difícil, como sempre é. 

Subidas íngremes, descidas escorregadias, joelhos esfolados, coração saindo pela boca, eu continuo, mesmo sem saber o porquê, mesmo sem razão pra continuar no caminho que já nem sei mais se é de ida ou de volta. 

Peço pra ninfa d'água que um dia habitou algum lugar pra me dizer o que fazer, pra me mostrar pra onde ir: setas brancas no caminho, setas brancas inconfundíveis e inegáveis me mandando fazer o caminho de volta, de volta pra ida, de volta pro fim, ou seria o começo? 

Eu trilho o caminho que você quer que eu trilhe, eu te sigo, eu te vejo, eu te busco, mas a sensação persiste:
Existo e não existo ao mesmo tempo, no mesmo lugar. 

Olho de cima e olho de baixo, coexisto, tão instável como jamais fui, e como nunca serei de novo. 

Eu andei o caminho, eu estive no escuro e não vi a Luz. Volto como fui (só que mais cansada, exausta), ou ainda vou,
ou estou indo e tudo isso é parte da trilha,

 
ao contrário do que diz a sinalização.

47x11 Ophelia, parte 1

 

Imagem: TingTing Huang

Ophelia drowns in a pool of possibilities, eu repito, feito uma louca, feito uma prece. 

Tenho um sonho recorrente, no qual me encontro e te encontro, morto, ambos mortos, afogados numa piscina enorme e cheia de possibilidades infinitas, sem bordas. 

Confundo mitologias, sinto como se um encanto de Merlin me pusesse completamente louca, eu ouço a sua voz e eu sei, eu consigo lutar contra irmã-irmão, mas eu não consigo lutar contra Morfeu no seu próprio reino. 

Então, eu acordo, noite após noite, no mesmo sonho, ou do mesmo sonho. 

Se me pergunto o que é real, já não sei. 

Tudo o que sei é que Ophelia de afoga numa piscina de possibilidades e eu não posso. 

Eu não posso, não posso, me afogar nessa piscina, 


mas eu não sei nadar. 

Early Cuts: Eurídice

 

Imagem: TingTing Huang

Horas de caminhada, e apenas silêncio.
A jornada é longa e solitária.
Estendo as mãos para trás, eu quero que me toque, eu preciso que me toque.
Mas ela não toca.
Só silêncio.
Eu sei que ela está ali, mas 

Onde? 

Nem um pio sequer. 

- Você está aí? - eu pergunto. Ela não responde. 

47x10 Mind tricks & unseen volcanoes

 

Imagem: TingTing Huang

Agora você vê,
agora não vê mais.
Entendeu? 

Feito um truque de mágica, por um breve segundo, eu o vejo:

Eu me sinto oca, uma árvore velha. 

E eu queria,
eu quero dormir sob as estrelas, ao pé de um vulcão ativo. 

Quero esperar com você, de você e em você. 

Dias, horas, minutos e segundos entre os planetas que não habitamos mais. 

Jet lag. 

Dividimos pão, ceia, casa, átomos e o silêncio que contém o segredo da morte das nevascas. 

Acendo velas e mais velas, sem fósforos, com o calor dos meus dedos, pra que você encontre de novo o caminho. 

E eu rezo pra uma ninfa cor de rosa pra que ela te guie de volta do mundo dos mortos, mas você olha pra trás. 

Você só existe lá atrás. 

E aqui, mas não agora. 

Ontem, amanhã. 


Agora eu te vejo
Agora, não mais.
Entendeu? 

47x09 Blood that I have bled

 

Imagem: TingTing Huang

Instável. 

É assim que ele me chama, nos meus pesadelos, uma voz no escuro, dizendo que sou instável, que nunca vou sair deste quarto. 

Mulher-loba, eu rosnava em um quarto dentro do Ragnarok, sempre junto, sempre só. 

Eu existia, naquela época, à parte do espaço e do tempo que definiam o correr dos dias e o passo da história que nunca era minha. 

Estava louca, mas eu era, e eu sou. 

Ele dizia que estava no meu sangue, uma mistura de linhagens infrutíferas e soturnas, que me tornava propensa à melancolia e me dizia, e profetizava que meu destino era matar ou morrer. 

Ou matar e morrer. 

Ele tatuou as minhas costas e meu cérebro, alquimista mortífero que tentava, desesperadamente, transformar morte em ouro, enquanto eu cuspia, vomitava e escondia o seu precioso lítio. 

(Eu não sou quem você pensa, mas eu sou quem você fez e eu serei quem você desejar)


E me dói e me alivia e me liberta saber que você estava certo. 

Está no meu sangue: mulher-loba louca, boca suja de salica seca correndo sob as luas cheias e quartos crescentes, até passar. 

E passa. 


Sem antídoto, sem o seu veneno e sem o seu sangue.
Passa.
Mas você estava certo, no entanto:
está no meu sangue. 

Não posso, portanto, deixar de me perguntar:
se você estava certo sobre isso, estava certo sobre tudo?
Meu destino é matar ou morrer?
Ou matar E morrer?

Se for, espero que nos encontremos de novo, em breve. 

Sinto que vamos, Teleborian, e você?

47x08 As mulheres que odiavam

 

Imagem: TingTing Huang

Tem um tipo de ódio que não consigo explicar, geracional, intenso, transformador, quente feito lava e frio feito a neve no topo das cordilheiras. 

É um ódio específico, ora líquido, ora viscoso, que eu tenho que experimentar, digerir, entender, ressignificar, ocultar feito o vestígio de um crime que nenhuma de nós cometeu. 

Sinto ódio, e não nego. 

Nomeio e semeio, homem, o ódio que recebi de herança é meu, até que eu passe adiante. 

Tenho ódio do que você fez e faz e fazem e fizeram e fará e farão. 

Dos dedos e medos e da chuva fina que caía sobre o meu cabelo mestiço na noite em que você não me disse não (e nem sim). Eu quero o seu bem, mas hoje não. Hoje eu me dou o direito único e irrevogável de lhe querer mal. 

E eu quero. 

Hoje eu quero que você seja infeliz, solitário, arrependido. 

Hoje eu quero que você pereça a medida em que eu floresço e escolho e sou escolhida. 

Eu desejo que você hesite e faça a escolha errada, contrária. E eu desejo, também, ardentemente -


(você)