31x05 The truth about that

Imagem: TingTing Huang

Era uma vez
uma menina muito, muito triste.
Ela estava sempre triste, o tempo inteiro.

Era uma vez,
uma menina que se achava horrível
e que chegava em casa, depois das festas e chorava sozinha por não ser bonita.
Que saia das aulas com a sensação de não conseguir entender nada do que os professores diziam.
Tirava notas boas, mas nem tão boas assim e, portanto, devia ser muito burra.
Pedia desculpas até por existir.
Pedia desculpas por não ser uma boa namorada, porque certamente existiam namoradas melhores. E mais bonitas, e mais inteligentes e cultas. E amigas melhores. E irmãs melhores. E filhas melhores.
E seres humanos bons.

Era uma vez uma menina. Que faltou uma aula.
E viu que isso era bom.
Que era bom ficar sozinha em casa, que era melhor do que ver as pessoas, tão assustadoras, tão terríveis e metidas.
Era uma vez uma menina que começou a sentir que não se encaixava mais. Que seus amigos falavam uma língua que não era a sua.
E que sua melhor amiga não sabia nada sobre ela.
Era uma vez uma menina que acordou com o despertador de manhã e soube que não iria mais sair de casa.
Era uma vez uma menina que fechou todas as portas, deixou de falar com todo mundo e se voltou pra uma pessoa só, pendurou-se no pescoço dela e não soltou mais.

Era uma vez uma menina que passou, da noite pro dia, a detestar sua melhor amiga.
Ela não conseguia entender o que estava acontecendo. Mas era maior e mais forte que ela. Ela entendia que era terrível e ridículo e possivelmente passageiro, então achou por bem se afastar cada vez mais, antes de tornar a situação irreversível.
E ela se sentia tão culpada por isso que nem sequer conseguia falar com ela.

Era uma vez uma menina que parou de comer.
E nem percebeu.
Até perder 6 quilos. E ouvir todo mundo dizendo que ela estava magra demais.
Aí ela comeu. ~
E a comida não tinha gosto.

Era uma vez uma menina que parou de dormir.
Ela fechava os olhos
E o sono não vinha.
Então ela ficava acordada a noite toda, pensando e pensando e pensando e pensando
E dormia quando a manhã chegava, exausta.

Era uma vez uma menina que amava escrever. E ler. Falar com os amigos.
Até não amar mais nada.
Os livros por ler se empilharam nas estantes, e os cadernos ficaram intocados.
E ela ficava o tempo todo deitada no sofá, na frente do computador, olhando a tela sem prestar atenção, pensando, pensando, pensando

Era uma vez uma garota que começou a dormir a tarde inteira.
Matava aulas e dormia.
Ia pra casa e dormia, dormia, dormia.
E não sonhava,
Só dormia.
E, às vezes, desejava secretamente nunca mais acordar.

Era uma vez uma garota que acreditava que ia morrer.
Ela somou os pontos, - que pontos eram esses, só ela saberia explicar - e percebeu que estava muito doente. Seu corpo apodrecia dia após dia.
E ela não se incomodou com isso.
Todos os dias, antes de se deitar, ela fechava os olhos e jurava que podia quase sentir
algo dentro dela, alimentando-se de sua energia vital, destruindo-a de dentro pra fora.
Depois, sentia-se culpada, muito culpada
porque o pensamento não a assustava. Muito pelo contrário, ele a inundava de
alívio.

Era uma vez uma menina que tinha certeza absoluta
de que não era mais a mesma.
Tinha alguém dentro dela.
Tinha alguém fora dela.
Olhava-se no espelho e não reconhecia o próprio corpo.
Ao acordar, não sabia ao certo quem era.
E tinha certeza de que todos aqueles sentimentos, aquela raiva, aquela mágoa, aquela tristeza
eram parte de outra pessoa.

Era uma vez uma menina
que começou a perder os limites de si mesma.
Sentia-se derreter, sentia-se liquefazer
e não conseguia evitar.
E ela tentou
Mas não sabia o que fazer.
Ela não podia melhorar.
A gente não melhora assim, por vontade própria.

Era uma vez uma menina que sabia que tinha algo de errado.
Ela sabia.
Ela sabia quando estacionava o carro na porta de casa e chorava lá dentro durante horas antes de entrar,
Ela sabia, quando gritava com ele, mas não queria gritar, sabia depois que brigavam, quando não conseguia entender o que tinha acontecido.
Ela sabia, cada vez que subia em uma balança,
sabia, cada vez que acordava e desejava não ter acordado,
sabia, cada vez que saia das aulas mais cedo pra não ter que falar com as pessoas,
sabia, cada vez que era rude com alguém com quem se importava,
sabia, cada vez que sentia que ele estava se afastando, se sentindo sufocado.
Ela sabia.
Mas não sabia o que fazer.

(Eu só queria que as pessoas parassem de reduzir tudo a teorias,
remédios,
força de vontade,
ser bom ou mau,
doente ou são
parassem de olhar pra um episódio da vida e achar que é ele quem me define.
Eu só queria que lessem o livro inteiro.

Porque eu sempre soube que estava tudo errado.
Eu soube no momento em que comecei a derreter, a me desconectar.
E não foi a primeira vez,
não vai ser a última.

Mas eu não quero viver com medo da próxima.
De que ela seja pior, muito pior, como a primeira foi.)

Era uma vez
uma menina
um dia, ela soube
ela descobriu o que era
e ficou muito, muito triste

porque não era câncer.

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