Early Cuts: Meth

Apenas mais uma tarde com L. 2013, mas poderia ser 2010.

("Abra bem a boca e feche os olhos")

Corro.
Está tudo escuro, árvores e folhas secas pra todo o lado.
Tem algo de estranho e familiar nessa paisagem. Algo que não consigo precisar. É tudo tão vívido. Até a escuridão é diferente. E o cheiro.

Do que é que eu estava correndo mesmo?
Não me lembro.

Alguém grita algo em alemão, em algum ponto atrás de mim, o som distante. Mais gritos seguem, gritos e risadas.
Me afasto do som.
Não sei o que está acontecendo, como cheguei aqui. Mas, de alguma forma, sei o que está pra acontecer. Preciso chegar à rua.

Corro.
Passo por árvores e prédios, parques abandonados, tudo escuro demais e, ao mesmo tempo, não tão escuro que eu não possa enxergar.
A rua, enfim. Iluminada, deserta: Brasília.

E agora?

Espero.
Nada acontece.
Volto na direção dos risos, agora cada vez mais altos.

Crec. Crec. Crec. Crec. Aguço os ouvidos.
Alguém encapuzado se aproxima, aparentemente sem me perceber.
Paro e observo.
Reconheço esse andar, reconheço esse corpo. "É um de nós?", e meu cérebro logo rejeita a ideia.
Ele se aproxima dos risos. Diminui o passo. Para.
Abaixa o capuz, tira os fones de ouvido. Parece atento aos ruídos agora.
Prendo a respiração.
Ele se aproxima, está quase lá.
Quando dou por mim, já estou empurrando-o de encontro à coluna de um prédio.
- B.? O que é que você está fazendo aqui? O que está acontecendo?
- Você tem que ir embora.
- Por que? O que essas pessoas estão fazendo?
- Você tem que --
Percebo que ele está assustado.  Eu nunca o vi assim. É tão surreal.
- Eu não posso responder. Se eu te dissesse que, o que quer que esteja acontecendo lá não é para os seus olhos, você ficaria satisfeito?
- Não.

Nós estamos muito próximos, muito próximos, próximos demais. Meu coração vai explodir a qualquer momento.
- Você tem que ir.
- Eu não vou --
Ele para de falar e olha para o meu pescoço e ombros.
- Isso é sangue?
Respondo, sem hesitar, olhando-o nos olhos:
- É tinta.
- Não parece tinta. B., você está bem?
Não respondo.

- Bels, o Alex está te procurando e você ---
A voz de Ulrika estaca.
- Quem é ele?
- Ninguém. - respondo, sem olhar pra ela.
- Oi, ninguém. Qual é o seu nome?
- Ulrika, não...
- Holden. - ele diz.

Ulrika olha pra mim, olha pra ele e eu percebo que ela está alta demais pra controlar a própria língua. Sei que ela não vai nem mesmo se dar ao trabalho de falar no nosso horrível código alemão.
- Você! O terceiro cavaleiro! Por que você o trouxe até aqui?
- O terceiro cavaleiro? O que é isso?
- É você, você é o terceiro cavaleiro, você sabe, --
- Ulrika, já chega.
Ela percebe meu tom de voz e dá de ombros.
- Ele está te chamando.
-Ele quem? - pergunta Holden.
Minha cabeça dói. Isso não podia acontecer hoje.
- Ulrika. Me ajude.
- Ok. Eu digo que não te encontrei. Bom te conhecer, cavaleiro.
Ela sai, saltitando.

- O que ela quer dizer com isso? Terceiro Cavaleiro?
Suspiro. Tem tanta coisa a ser explicada, tanta coisa que eu não gostaria de explicar.
- Sabe, eu digo a ela que ela é bonita demais pra que alguém ouça o que ela diz. Acho que ela acredita nisso.
- Tá. Me explica. O que está acontecendo?
- Você tem que ir.
- Ok. Pare de dizer isso. Por que você está suja de sangue? E por que eu ouvi gritos lá dentro? O que essas pessoas--
E David o interrompe, falando em código, do seu jeito perfeito:
- Eu não acreditei quando a Ulrika contou. Ele é seu amigo?
- Não, David. Por favor.
- Bels, você tem que ir. Ele está te chamando.
- O que ele quer? Eu já fiz tudo o que tinha que fazer.
- Ele quer você.
Suspiro. Tenho que ir.
Olho nos olhos atônitos de Holden, totalmente perdido na nossa conversa enrolada.
- Você leva ele embora? Agora.
- Claro.
Eles se afastam, e eu sei que deveria voltar, mas algo me diz pra ficar de olho nos dois. De algum jeito, consigo ouvir a conversa dos dois, dentro da minha própria cabeça.

- Então, você é amigo da B.?
- Sou.
- Pode me dizer o que está acontecendo?
- Por que você não pergunta pra ela? Ela é sua amiga, não é?
Ele não responde.
- Deixe-me adivinhar: ela ignora você. Quando conversam, ela é rude sem razão. Nunca te olha nos olhos. Fala com todo mundo, menos com você. Cheguei perto?
- Ela... Ela age dessa forma.
- É claro que age.
- Por que?
- Por que o quê?
- Por que ela age assim?
- Hm. Eu não gosto nada do seu nome.
- O quê?
- Seu nome. Você é polonês?
- O quê?
- Polonês, alemão
- Eu não sei, talvez, meu bisavô --
David dá aquela risada esquisita que ele sempre dá em momentos aleatórios.
- Vou te dizer uma coisa: Corra. Se ela vier na sua direção, corra. Não fale, não escute, não pergunte.
- Não pergunte. Ela me disse a mesma coisa outro dia.
- Disse? E o que você fez?
- Continuei perguntando.
- Por que?
- Eu estava curioso. Sobre ela.
- Então esqueça o que eu disse. Você já era.
- O quê?
- Vá pra casa daqui. Não volte pra lá e esqueça o que aconteceu aqui. Vá pra casa ou ---

Alguém toca o meu rosto com a mão gelada, me assustando.
O som da voz de David morre aos poucos e é substituído pela voz de L.

- B? B, você tá legal?

Sinto tapinhas no meu rosto. A noite sai de foco e eu me dou conta de que é dia e estou deitada no forro de sofá florido da casa de L. , que me observa. Estou fraca, febril, meu corpo todo dói.

- E agora, o que houve? - ela pergunta.
- Ele foi pra casa. Mas ele sabe. Ele sabe de tudo.

Ela se senta do meu lado, acaricia minha cabeça e suspira:
- De novo. Abra a boca e feche os olhos.

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