31x11 Insight

Imagem: TingTing Huang


Acordei há umas semanas. Faminta. Bem. Curada. Nova. Feliz.
E comi.
Seria capaz de comer qualquer coisa.
Qualquer quantidade.
A qualquer hora.
Acordava no meio da noite, faminta.
E comia.
Comia.
Comia. Até pegar no sono, sem escovar os dentes.
E acordava com fome. E com nojo do gosto da minha boca.
Com nojo da minha boca.
Com medo de que meus dentes caíssem.
Aí escovava os dentes.
E comia.
Comia.
Comia.

Eu não sei quem eu quero ser.

Eu sinto um vazio, um vazio crescente, abrindo caminho por dentro de mim.
Um vazio que preenche. Que cresce,
enquanto eu observo, sem poder fazer nada.

Abri um buraco no dedo.
Bicho de pé.
Enfiei a agulha fundo, bem fundo e saí cortando o buraco até tirar de dentro aquele bichinho encolhido, minúsculo.
Cortei com alicate, joguei álcool em cima
e ficou um buraco.
Um buraco vazio, que nem eu.

Tem gatilho pra isso?
"Deixa a B. falar, quando ela explica dá pra entender"
Mas você já se perguntou como é que ela sabe disso?
- Todo ataque de pânico tem gatilho?
Talvez.
Só que, depois de um tempo, você nem sabe mais qual é.
No começo, é o azul.
Você pinta seu mundo de cinza, o mundo inteirinho.
Até que percebe que o cinza, tem um z. Z de azul.
E aquela cor já não serve mais.
Toda a tinta do mundo não vai ser suficiente.

Estava tudo bem.
- Está tudo bem - eu disse.
E eu não menti.
Eu não minto sobre isso. Não pra ele.
Era verdade quando eu disse.
Tem gente que diz que isso é como mentir pra mim mesma.
Não é.
É diferente, porque nem eu sei que é mentira.
Não consigo encontrar as palavras pra explicar esses dias
Você acorda
e está tudo bem.
Vai ficar tudo bem.
E seu coração sabe, sua cabeça sabe,
que é verdade.
A vida é boa, seus amigos são bons, as pessoas são ótimas.
As cores, os livros.
Você come.
Você come e isso só pode ser bom.
Você dorme 3 horas por noite.
E fica cansada. Ou não.
E seu coração está calmo.
Vai ficar tudo bem.
Não é mentira. Mas também não é real. E não tem ninguém pra te avisar.
É como subir em um palco, dizer todas as falas com toda a confiança, entrar no personagem, hipnotizar a plateia. E, quando as cortinas se fecham, você percebe que esteve nua durante toda a apresentação.

Eu fui perdendo a vontade de ouvir música.
Gosto de pensar que foi um sinal. Que eu poderia ter percebido.
Música me deixava impaciente.
Aí eu acordei.
E comi.
Comi.
Comi.
E o dia começou a escorrer.
A pesar.
Fui pra aula.
E percebi
Que não queria ter ido.
Que não queria ter dirigido.
Que não queria ter aberto as janelas.
Ou conversado.
Eu não queria ter tocado ninguém.
E nem queria participar de nada, ou saber segredo algum.
Eu não queria saber.
Fui embora, aliviada, tão aliviada pela conversa amena, sobre comida.
E comi.
Comi.
E comi.

Minha mãe mandou mensagem.
E eu percebi
que queria ir embora.
Que queria nunca mais voltar.
Deixar a casa exatamente assim, como quem saiu às pressas, com a roupa do corpo, sem carro, sem nada.
Calçando chinelos, sair andando por aí.
Até chegar a lugar nenhum, até derreter e desaparecer.

Eu não me importo com o que acontece amanhã, ou depois, ou setembro.
Eu só quero não ser eu.
Não é insuportável, não agora. Já foi.
Mas é doloroso. Incômodo. Dá uma agonia.
Eu tô com vontade de sair do meu corpo.
Ao mesmo tempo, tem alguma coisa querendo sair do meu corpo.
O vazio, talvez, inflando feito um balão, ocupando cada centímetro debaixo da minha pele.

Uma garota da minha turma disse que seria bom
se as pessoas pudessem simplesmente prever as coisas.
Por que?
Pra deixar um bilhete na cabeceira da cama dizendo pra mim mesma que vou acordar me sentindo uma merda?
Pra pedir pros amigos esconderem meu cartão de crédito?
Pra avisar pro meu namorado que eu vou querer pegar um guardanapo e esfregar um hambúrguer só pra tirar o molho dele?
Ou que, em certos dias, eu vou ignorar quem ele é e o que precisa e fingir que ele só serve pra sexo?
Ou eu devo ficar em casa pra não machucar ninguém?
Pra não puxar assunto com quem não conheço ou pra não ser horrível com quem conheço?

Eu quero acreditar.
Eu gosto da minha ingenuidade, da minha burrice.
Mesmo agora, eu sinto falta daquela sensação. Das vezes em que olhei no espelho e achei que estava bom.
Por pior que seja entender que nada daquilo era real,
eu não mudaria nada.
Estava tudo bem.
Eu ia ficar bem e chegar ilesa, no final.

Agora, eu nem sei se quero chegar lá.

Ella me diz que preciso dos remédios antigos, do Dr. T., de alguma classificação, um algoritmo padronizado. Mas eu não quero outro algoritmo. Não quero ninguém pra dizer quais das minhas características podem ser chamadas de critérios.
Eu não sou a porra de um caso que você lê num livro.
Eu não sou a porra de uma checklist.
E me dá muita raiva de quem tenta me reduzir a um grupo de palavras, de quem acha que a vida é muito simples, remédios coloridos e finais felizes.
VÁ.SE.FODER.

Eu tenho 23 anos.
Filha mais velha de 4 irmãos.
Eu curso medicina.
Gosto de ler.
Gosto de Brasília.
E de comer sorvete com batatas fritas.
Gosto de música indie e baladas levinhas pra ouvir e pensar.
Também gosto de música pop
E de dançar.
Mas, em alguns dias, eu acho que estou normal. E não estou. E vivo com uma sensação constante de não saber se sou quem acho que sou. De não saber se sou como acho que sou.

Eu costumava escrever histórias. Mas parei. Eu não sei se acredito mais no que elas significam.
Eu achava que elas iriam me proteger.
Que elas não iriam deixar que ninguém entrasse
e me magoasse.

Quero só terminar esse texto confuso.
Mas não sei como.
Então não termino.
É como essa coisa dentro de mim,
termina,

mas nunca acaba de verdade.

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