41x20 Glinda and the flying monkeys (Season finale)

Imagem: TingTing Huang

Ela abre o livro e ela sabe.
Ela sabe, mas não é realmente um segredo.

Pode-se sentir o cheiro de longe, mesmo daqui, do país dos quadling, e pode ser sentido desde as paragens mais distantes de Winkie.

Ela acorda pela manhã, faz seis coisas boas, antes mesmo de comer.

Ilumina o castelo e espalha o que é amado, bom e belo.

Ela começa o dia, iluminando o mundo, e só para quando fica exausta demais pra fazê-lo.

Não é facil ser a bruxa boa do sul. Nunca foi, nunca será.
Muita gente pra agradar, muita gente de quem cuidar.

Tanto, tanto por fazer.

--

Acordo pela manhã, e é caos. Caos.
Eu escureço o mundo, decepciono 4 pessoas antes mesmo de lavar meu rosto.
E, ainda assim,
me levanto.

Deixo o mundo mais sombrio a cada silêncio, a cada careta.

Guardo amor no armário e passo o dia apática, incapaz de um comentário amigável e um elogio.

Eu sou verde.
Por dentro e por fora.

Eu só sei machucar, e não importa o quanto eu tente, Glinda.
Não importa o quanto eu tente.
Não importa o quanto eu me esforce.

Não é fácil ser a bruxa má.
Mas alguém precisa ser.
Muita gente pra agradar, muita gente.

Tanto, tanto por fazer.

E, ainda assim,
não importa o quanto eu tente.

Bebo água e ela desce queimando, eu preciso ficar forte.
Mais forte do que você.
Mais forte do que eu.

Mas não importa o quanto eu tente,
não importa o quanto eu me esforce,

você sabe.

Você sabe o que acontece no final da história.
Sobre Dorothy, leões, homens de lata, espantalhos e macacos voadores.

Só tem um final possível.

Você sabe.
Você sempre soube.

Early Cuts: Rio

Imagem: TingTing Huang

O céu tem gosto de sal.
A praia gelada me deixa louca, faz cócegas.

Gaivotas.
Gaivotas são reais.

E a espuma do mar vem, triste, me beijar os pés.

Eu sou filha de Iemanjá.

A sua boca me queima de saudade dentro do peito, mas eu preciso ficar.

41x19 Jonas e a baleia

Imagem: TingTing Huang

17 olhos abrem-fecham e ele suspira alto, bagunçando meus cabelos e me enregelando os ossos.
Ele abre os olhos, boceja, e eu entro na boca do monstro.
Estômago quente, úmido.
Eu, presa, me pergunto:

O que houve?
Deus, o que houve?
O que eu fiz?
Por que eu não posso dizer
não?
Mas ninguém me responde.

Muito pelo contrário.
A vida segue, e os moradores do estômago do monstro caminham de um lado a outro, sem rumo definido.
clac clac clac clac

Eu corro com papéis nas mãos, tonta, perdida, toco, falo, vejo, mas não olho, e bato ponto, sigo a fila, respondo à pergunta, digito, carimbo.
E, toda noite, o monstro me cospe fora, só pra me engolir de novo quando chega a manhã.

Engole tudo, suga o ar à minha volta, o ar da sua boca e o gosto de estar viva, do seu beijo e as batidas do seu coração.
Eu entro, forte, bruta, esperneio, mas me conformo, me contenho e caminho, corro, olho, vejo, paro, não respiro, vontade, receio, saudade, vontade, vontade, vontade, vontade, carimbo.

Ele me cospe pra fora, cansada, exausta, bruta, suja, pra que eu possa correr até o lugar em que você  está e eu até corro,
mas eu não sou mais eu.
Eu não sei ser eu.
E se você não me reconhecer?
E se você não me amar?

Todos os dias, o monstro me engole e cospe, me arranca pequenos pedaços e me desfigura.
Todos os dias, eu volto pra você, cada vez menor, cada vez menos eu, cada vez menos
pra bater na sua porta, morrendo de medo do dia em que você

não vai mais abrir.

41x18 Fully wired circuit

Imagem: TingTing Huang

Eu amo você.

Esses caninos bonitos que me mordiscam a boca e o ombro, seu perfil sério enquanto você dirige tentando fazer com que a gente chegue vivo.

Eu amo esse jeito triste de ficar em silêncio e suas pequenas vitórias de todos os dias (sou muito mãe, é), o que acaba por tornar esse um relacionamento freudiano bizarro.

Amo suas memórias, suas histórias e os eventos secretos que se escondem na sua imaginação, as letras do seu nome, tantos R's, tantos S's, o seu corpo,  seu cansaço bizarro e sua risada exagerada.

Amo a textura suave da pele do seu rosto, seu gosto e os pequenos momentos em que você se lembra de me beijar quando eu tô distraída. Eu amo o seu dia, suas paixões, seus antebraços, nossas primeiras conversas, os pequenos sacrifícios que a gente faz pra se ver (desculpe! obrigada!), a cor castanha dos seus olhos, o fato de você ser claramente transtornado, sua descrença no zodíaco e no destino, te acordar de manhã me jogando em cima de você,

Eu amo sua inteligência esperta e prática, passar a mão nesse seu cabelo macio, rádio e ulna, a forma como você come um sanduíche quando está nu.

Tem uma certa poesia nas suas cuecas terríveis e na sua condescendência irritante, nos seus conselhos adultos demais e no azul da parede do seu quarto.

Eu amo a vagareza com que você lava a louça e esse seu jeito de menino mimado que dá vontade de irritar, morder e xingar.

A cadência da sua respiração e os raros momentos em que você me chama de "mulher".

Gosto das tardes emboladas nas cobertas, da sua constante arrumação da minha cama, dos seus impulsos malucos e das suas blusas de frio. Do som da sua voz no escuro, das mensagens de boa noite.

Da textura da sua língua, do calor das suas mãos e do suor das suas pernas, eu gosto de finalmente segurar sua mão por cima da mesa, dos verbos que você usa no futuro, de ser importante.

Você apaga as luzes, é sua vez.
E eu não estou com medo de que você vá embora, mesmo assim, seguro a respiração por alguns segundos até você se deitar com a cabeça perto da minha.

- Eu amo você.

E o som dessas palavras dança no ar, sem que elas se percam, sem que o significado delas se dilua nos meus medos e inseguranças, porque você é real.
Você é real.

Eu toco o seu rosto, ponho a mão de forma que eu possa sentir seu coração bater e tudo bem

Tudo vai ficar bem.

- Eu sei.

41x17 Human-like

Imagem: TingTing Huang

Adéquo minha expressão facial: a história é triste.
Deixo meus lábios caírem, ajusto a gravidade do olhar, relaxo os ombros.

- Você não é humana, sussurra a mulher que vive em meus ombros - todo mundo sabe.

"A B é tímida"
"Séria"
"Quieta"
"Quieta nada haha"

Ela não é humana, ela sussurra, rouca, febril, suor gelado escorrendo sobre minhas costas.

Chego em casa, tomo um remédio mágico e ela some, mas meu coração continua apertado e eu não consigo pensar ou reagir.

Esqueço como se sorri.
Minha boca fala e meu coração nega tudo, sussurra coisas incompreensíveis, muda de assunto e me leva a crer que ele não sabe de nada, mas aí eu não tenho em quem confiar porque a cabeça silencia, bloqueia, entra em parafuso, desliga o interruptor e eu não sei mais pensar que isso é passageiro e eu posso melhorar, que isso é só o ponto baixo de uma história longitudinal.

E eu fico em silêncio, cega, muda, preciso saber pra onde ir, então me ajoelho pra que ela suba nas minhas costas, arranco a mordaça e ela fala, jorra lama escura sobre os meus dias, morde o meu rosto e me diz que não sou humana, me conta segredos sobre mim e sobre meu futuro, como as moiras, mas seus segredos penetram minha pele e rasgam tudo, dilaceram carne e derramam sangue até não sobrar mais nada.

E só então ela desce das minhas costas, forte, jovem e me olha nos olhos.

E então ela não precisa dizer mais nada.

Em situações como essas, palavras se tornam desnecessárias.

41x16 Down the drain

Imagem: Ting Ting Huang

Sonho que me afogo.

A água fria me abraça, eu afundo e não me debato: estou cansada.

Algo em mim, força vital, leoa, pantera de Rilke, se debate por detrás dos olhos, debaixo da pele, mas meu corpo, minha casa, meu cavalo, meu cão de caça, minha prisão me impede de me mover.

Meu corpo quer morrer.

Ele me diz que se cansou.
Da luta, do novo, da tristeza humana e da dor.
Mas eu não quero morrer.

Arranho as paredes da minha cela, eu não quero morrer.

Eu quero viver.
Quero acordar cedo e dançar a música do universo, deitar ao lado do homem que eu amo e dormir com o braço dele ao redor da minha cintura.

Eu quero viver pra superar dificuldades e ganhar.
Quero doces, salgados, chili, milho e massa.
Quero me apaixonar todos os dias por algo novo e secreto, como o gosto de azeite com batatas e pão com manteiga.

Quero ver crescimento e mudança, o natal e meu primeiro filho.

Mas meu corpo adormece e apaga de mim as memórias, desejos, sonhos e eu durmo,
afundo, lentamente,
enquanto meus últimos grãos de sanidade gritam
que eu acorde.

E eu acordo.

Eu acordo, e estou viva.

Mas a sensação não passou.
Afundo.
Eu quero viver,
mas meu corpo --

Como eu acordo
quando já estou acordada?

41x15 Happier trails

Imagem: TingTing Huang

Ela chegou pela manhã.
Maria levantou os olhos do livro e observou a recém-chegada, confusa, tropeçar e cair na grama úmida.

Não fechou o livro. Relia "Dom Casmurro" e não sabia ao certo quanto tempo teria para terminá-lo. Guiomar daria conta dela.

Dito e feito, Guiomar se aproximou dela e falou.
Quanto mais falava, mais animada ficava por ouvir a própria voz.

Caminharam, juntas, pela grama, num jardim onde o tempo não passa, não é parte da vida ou da morte, é feito de existência pura.

Ela perguntou sobre os filhos.

Guiomar explicou o que não pode ser explicado. Existe a morte. Existe a vida. E existe uma linha tênue entre as duas, uma corda bamba, e é nela que estamos agora. Estamos à espera.

Mas ela não entendeu.
Ou não queria entender.

Sentou-se no chão, e ficou em silêncio, olhando o nada.

As outras chegaram mais perto, pra olhar a recém-chegada.
Estela, de avental, veio correndo. Eva, parou de plantar mudas de plantas cheirosas e Antônia de conversar com Pedro.
E todas elas vieram ouvir uma história nova, oferecer consolo e cafuné.

Não é todo dia que chega gente nova.
Ainda mais alguém tão jovem.

Mas a moça nova não queria saber de conversar.
Ela só queria ficar em silêncio.
Ainda não tinha entendido
que passaria o resto da vida em silêncio.
Presa em si mesma.
E que precisava existir.

Precisava falar pra existir.

Mas ela não abriu a boca.

Ficou em silêncio a manhã inteira, como quem espera, como quem sabe.

E então, com o sol a pino, ela adormeceu
e nunca mais acordou.

Elas fizeram pra ela uma coroa de flores, e deitaram seu corpo em um lugar ensolarado, pra que o tempo a viesse levar aos poucos.

Maria levantou os olhos do livro, quando a cerimônia acabou e, por um instante, se fez a pergunta que fica a espreita de cada um dos que ali viviam, mas não soube a resposta, então baixou a cabeça e, finalmente, leu seu livro até o fim.

Quando sua hora chegasse, estaria pronta.

41x14 Pantera

Imagem: TingTing Huang

Abro os olhos, e a luz invade o corpo todo, acorda as células e a boca seca. Umedeço a língua, sinto o gosto das bactérias da manhã.

Tento olhar pela janela, o pescoço duro.

Frio.
O corpo todo arrepia, contorcido. Enrijeço os dedos com raiva, pisco os olhos secos.

Penso.

A mulher no leito da frente pisca, senta, fala uma fala embolada. Me irrita. Enrijeço os punhos.

Desvio o olhar para o teto branco e olho fixo até os olhos lacrimejarem.
Sinto falta da música, o som dos tambores, o choro de minha filha e o seu ato de sugar minha força pelo seio.

Minha cuidadora me toca, mãos geladas, me despe sem pudor.
Sinto meu próprio cheiro, de fezes e urina, e me envergonho, olho para o teto.
Ela passa a toalha pelo meu corpo, me arranha com o tecido áspero.

Engasgo de raiva e o ruído da traqueo me irrita, o falatório no quarto, o esteto gelado do médico, os cumprimentos vazios.

Uma mulher se inclina sobre mim e ela cheira a xampu.
Eu sinto falta de xampu.

Sonho, às vezes, com um banho quente de chuveiro, estender minhas mãos e lavar meus cabelos, o cheiro da limpeza, andar descalça pelos azulejos.
Nos meus sonhos, sinto o cheiro da pele da minha filha, suada, de bebê. A textura, o cheiro do leire, saliva, urina e fezes.

Me acordam, me despem, e me deixam nua no centro da sala, sem a minha permissão.

Eu dancei no topo do mundo sob as estrelas, entre homens que me desejaram e eu escolhi dentre eles o pai de minha filha, e o amei e entreguei a ele o meu corpo, minha alma.
Eu sei segredos obscuros sobre a lua, e a deusa negra que mora nos oceanos. E meu corpo tem o poder de mover as marés.

Eu tento dizer, mas ela não se importa.
E eu choro uma só lágrima salgada que ela deixa escorrer e secar, sem compaixão pelo que fui.
Pelo que eu poderia ter sido.
Pelo que eu ainda sou.

Porque eu sou.

Eu estou aqui.

Eu estou aqui.

41x13 The Alchemist Club

Imagem: TingTing Huang

Amar é ser responsável?
Quais são as regras pro amor?

Não existem regras, eu soube.

Cada pessoa é diferente da outra e duas pessoas combinam de diferentes formas.

Eu te amo.

Ama? E agora?
O que eu faço com isso?
Eu te amo de volta, mas e depois?
O que é meu e o que é seu?
O que é nosso?

O quanto eu devo saber?
O quanto eu devo contar?
Quão maleável tenho que ser?
Eu quero mudar?
Eu devo?
E o medo de que você vá embora?

Frio na barriga, meu estômago revira e se revolta contra a dependência do seu corpo e da sua companhia, eu te amo.

Crio uma bolha pra nós dois, mas o tempo escorre por algum poro e eu tenho medo de que o amor acabe e você queira ir embora e eu
e eu?

Byron disse: sobreviverei.
Eu estava sozinha antes de você e tudo bem ficar só, mas não quero ficar sem você.
Não tenho medo de ficar só, homem.
Mas tenho medo de ficar sem você.

O amor traz novas sensações antigas, conforto, abraço, segurança, calor, cafuné.
Mas também traz medo do futuro incerto.

Podemos sobreviver mais um mês ou seis?
Um ano ou dois? Bater recordes, dobrar metas?
Até você se formar?
E depois?

E depois
E depois

E depois

E depois
a gente vê o que faz.

41x12 O Drácula de Heber

Imagem: TingTing Huang

N/A.: Texto baseado em uma conversa genial com um ser humano genial.

- Eu tô quebrado? - ele pergunta.
- Não. Você não tá quebrado.

Não minto, e agora vejo isso.

É preciso que duas pessoas assumam os papéis do vilão e do mocinho, Drácula e Mina, pra que aconteça o que aconteceu. Estávamos dispostos a atuar, mas isso não nos torna permanentemente vilão e mocinha, vilã e mocinho.
Simplesmente somos.

Erros como o nosso são cometidos a torto e a direito e é preciso muita coragem pra não levar adiante por costume. E, homem-cavalo-leão, eu te desejo todo o amor do mundo, toda a felicidade no seu próximo papel, você me fez mais leoa, e eu me fiz mais humana, mais mulher.

Você limpa meu sangue da boca e segue seu rumo, que eu já segui o meu, eu já moro no abraço desse moço e a gente escolheu atuar numa história bonita e sem brigas, na qual a gente conversa e ele não se sente obrigado a ler minha mente, eu penso na raiva e percebo que ela é balela, ele espanta minha tristeza com as mãos e ela vai embora, se esconde pra voltar depois e ser afugentada de novo.

Eu não tô quebrada.
Só não tô bem.
Mas isso não significa que vou cometer os mesmos erros.

Não,
definitivamente não.

41x11 Bolsa térmica

Imagem: TingTing Huang

Caro Otto,

eu acordei de manhã.
Que situação perfeitamente banal.

Minha casa encontra-se naquele estado de caos costumeiro. Igualzinho à minha cabeça.

Descrevo:
Na sala, os livros de empilham na estante, aguardando que eu os leia, assim como os pensamentos complexos se empilham nas estantes da minha cabeça, aguardando que eu dê algum parecer sobre as questões complicadas da vida, sobre Claire, meu corpo, e todas as coisas simples que eu teimo em complicar.

Tento arrumar, colocar tudo na ordem, jogar no lixo o que não importa, mas você sabe que tenho dificuldade em me livrar de coisas velhas.
Então guardo nos cantos da mente pra rever depois, ou jogo em um saco, amarro e coloco debaixo da pia.

Alguns deles se espalham pelo chão do meu quarto, ocupando cada espaço e fazendo com que eu machuque os pés e tropece, eventualmente, em pensamentos intrusivos como um que tive noite passada, sobre estar feliz ou não.

Tento jogar alguns deles no armário, escondê-los, mas o armário explode, eu procuro algo útil pra usar pela manhã e, no processo, jogo todos os pensamentos que tinha guardado pra fora do armário, exponho coisas nas quais não preciso pensar e o caos reina.

Preciso dormir, preciso descansar, mas a cama e a cabeça estão cheias de coisas que eu simplesmente pego e coloco em outro quarto, esperando que o tempo ou algum ser mágico as faça desaparecer, mas elas continuam ali, à espreita, esperando que eu arrume a bagunça e coloque as coisas no lugar.

Insetos entram e fazem a festa, criam ninhos e teias, me envenenam os pensamentos mais profundos e eu chego naquele ponto em que eu não consigo entender de onde surgiu esse rancor súbito, magoo pessoas que nada tem a ver com o caos e depois sumo em meio aos objetos dispersos.

As pessoas me dizem coisas boas e eu rejeito todas, todas, sem hesitar. Minha mãe me liga no meio da noite e eu espero que ela diga algo ruim, eu quero me sentir pior, então não saio de casa, não como direito, e procuro uma briga com a última pessoa com quem quero brigar. Não tenho forças pra parar, e rejeito convites e pessoas, eu me rejeito e eu sei que isso é só o veneno do escorpião que matei correndo nas minhas veias.

Quero ficar sozinha e questionar tudo o que existe de bom, eu não sei ficar feliz.
Por que?

É, eu sei o que você diria, sei o que você faria.

Você invadiria a minha casa, quebraria as portas, estouraria minha bolha e me levaria pra ver o sol. Sem compromissos, sem afazeres.
Sem regras.
Sem pessoas pra quem acho que devo algo, sem culpa.
"Hoje é sábado", você diria, "não tenha medo".
E eu não teria.

Eu faço o melhor que posso.
Mas não hoje.
Hoje eu durmo,
e como besteiras, eu assisto séries e leio e fico só porque quero ficar só, eu quero ficar só.
Eu não quero festas,
eu não quero trabalhar,
eu não quero estudar.

Eu quero desligar meu celular e ler, e não complicar as coisas.

Você não tá aqui pra me levar pra ver o sol e a parte simples das coisas, então eu vou fazer isso, à minha maneira.

Espero que você esteja bem.
Saudável.
Bem alimentado.
Mentalmente são.
Inteiro.
Feliz.
Espero que esteja se sentindo útil, que seus cabelos estejam grandes e sua barba crescida.
Espero que esteja sendo amado pela pessoa certa, no momento certo.
Espero que você a ame.

Com amor,

B.

41x10 Christine

Imagem: TingTing Huang

Acordo suada, no meio da noite.
Não consigo mais dormir, ele me olha, entende, acaricia meu rosto.
Mas ele não pode fazer nada.
Ninguém pode fazer nada.

O telefone toca no meio da noite e meus pelos se eriçam na nuca.
Tremo.
Ele me abraça forte, empurra o celular, e me diz que não preciso ter medo.

Vai embora, eu fico só.
Tenho medo de sair de casa.
Ele me traz comida, bebida e amor, me diz que lá fora tá lindo, que tem gente que ele quer que eu conheça,
mas eu tô presa,
eu não posso sair
eu tenho medo
e eu tenho mais o que fazer.

Ele me beija,
me abraça,
me despe,
e eu não consigo me desligar do fato de que eu preciso terminar o que comecei.
Eu não posso comer,
não posso dormir,
ou ser
enquanto não terminar.
E eu só quero viver.

Choro, desesperada.
Eu só quero um tempo.
Pra ler, pra dormir, pra beijar meu namorado na boca e passar o dia na casa dele,
eu quero poder parar e respirar.
Tomar um sorvete, jantar com amigos.
Eu quero poder passar uma noite em paz.
Eu quero não me sentir fraca e inútil, eu quero andar de bicicleta no domingo de manhã
e comer algodão doce.

Quero parar.
E ficar parada.
Respirar.

Quero não me afogar em comida sempre que estiver assustada.
Quero meu corpo de volta,
quero minha sanidade,
quero meu tempo,
e minha bravura.

Ele me diz que acaba logo,
daqui a pouco estamos livres.
E eu quero acreditar, mas já faz tanto tempo, que eu nem sei mais como é a vida sem o medo de não conseguir.
Sem a certeza de que estou fracassando.
Eu quero acreditar, amor

Mas eu fecho os olhos pra descansar
o celular toca
e eu sei,
simplesmente sei,
que não vou conseguir dormir.

41x09 Gobi ou a mãe que não era mulher

Imagem: TingTing Huang

Eu acordo cedo, lavo meu rosto e a tinta  branca escorre pelo ralo, sujando a pia.

Acordo meu filho, uma bolinha pequena de cabelos raspados e olhos tão castanhos quanto a cobertura de chocolate do meu sundae favorito.
Ele resmunga e se levanta, sonolento.

Lavo seu rosto até que a tinta escorra inteira, raspo os pequenos chumaços de cabelo da sua juba de leão, eu repinto seu corpo inteiro, pedaço por pedaço, com a paciência de uma artista, pinto com carinho, temor, eu me lembro de um homem que amei e que me disse que, um dia, os Lordes Negros tomariam o poder do mundo e nós poderíamos parar de nos esconder no escuro.

Fazemos uma pequena prece e meu filho, com sua voz infantil, pede a bênção dos Lordes Negros, pede um futuro, pra ser confundido com os outros meninos brancos, pra não ser morto, pra não ser pego pela polícia, pra não ser notado, pra não ser preso, pra ter algumas oportunidades minimamente equivalentes às dos outros garotos, pra não precisar correr, pra não sentir medo, pra não se sentir pequeno, pra sentir orgulho de ser quem é, pra voltar pra casa no fim do dia, pra poder entrar em
uma loja sem ser confundido com um ladrão.

Mais uma vez, sinto uma ânsia triste de pedir desculpas a ele. De me desculpar por não ser mais clara. Por não ser branca.
Mas me lembro de que eu amo a cor da minha pele e minha juba de cabelos, eu amo a minha história e a dor que corre nas minhas veias.

Enquanto ele come, eu conto as histórias do mundo, como foram contadas por meu pai, e no nosso sangue vivem um milhão de almas, um milhão de heróis, homens e mulheres correndo descalços, assustados, mas que jamais serão derrotados por grilhões ou açoites, que vão viver pra sempre através dos olhos castanhos do meu filho, na cor da pele e nos cabelos que enrolam e formam pequenos anéis.

Conto a ele sobre o Tigre e a Aranha, e os animais que vivem na floresta do fim do mundo, e ele me diz que quer ser um pássaro ou uma aranha.
Eu digo a ele que ele pode ser quem quiser.
Mas ele sabe que não é verdade, porque ele não pode ser quem ele é.

Chega a hora de ir e ele me abraça forte
"Mãe, quando os Lordes Negros vão vir buscar a gente?"
- Logo, logo. Enquanto isso, seja um bom menino, sim? Obedeça. Mantenha a cabeça baixa. Não corra. Não ande sozinho. Não pegue nunca as coisas dos outros. Não dê motivos pra que eles olhem pra você. Ok?
Ele faz que sim com a cabeça, me beija e vai embora na direção do mundo cruel.

Eu volto pro banheiro, lavo todo o meu corpo, fazendo escorrer toda a tinta, arranco minha peruca e solto meus cabelos, deixo-os livres pra voar e se enrolar em todas as direções.
Você abre a porta e me observa, em silêncio, com aquela admiração muda, seu rosto branco do jeito certo, o nariz do meu filho, as pintas do meu filho, o sangue do meu pequeno mestiço brincando de correr pelas suas veias.

Você sabe.
Eu também sei.
Mas ele ainda não precisa saber.

Ainda há tempo,
certo?

41x08 O medo da coisa, a coisa do medo

Imagem: TingTing Huang

Abro as cartas, uma a uma, leio o seu nome, me assusto, mas continuo.

Tenho medo. Medo da coisa, medo do medo, medo do que quer que aconteça nas manhãs de setembro.

Eu tenho medo de não saber, de não ter dinheiro, do quarto vazio, dos escorpiões que saem do ralo e do amor.

Danço nua, no escuro, faço preces, mas meu futuro é incerto, as cartas me confundem, o som do mundo me canta canções divergentes e eu só não sei.

Sento no chão do apartamento sob a não luz de um eclipse e não choro, meu corpo rejeita as lágrimas, repele o fracasso e me corta e empurra pra que eu me levante e ande, e eu cambaleio até o banheiro, vômito preto cobre o chão e os meus pés, suja as paredes e as portas dos meus mundos.

Eu tô assustada e me escondo na curva do pescoço do homem que eu amo, e não durmo, não durmo e nem aceito que o tempo passe e que a vida continue lá fora, que ele vá embora, que o futuro se descortine de maneira imprevisível.

A coisa do medo, o medo da coisa é que me coloca próxima de quem eu era antes, de quem eu não quero mais ser, e ela me sussurra palavras que não compreendo, que não quero compreender, que não posso mais compreender, mas que eu tenho medo de voltar a compreender, então eu me afasto de você por medo de me afastar de você.

Loucura, é.

Eu sei.
Agora, eu sei.

Não pretendo cometer os mesmos erros.

41x07 Voiceover

Imagem: TingTing Huang

"Você tem certeza disso?"

Eu penteio meus cabelos, como frutas. Faço alongamento, às vezes volto a dormir.
Acordo, trabalho, como
"Você não é estável o suficiente"

Eu passo maquiagem.
"Você vai machucá-lo. Muito. Mas você não pensa nisso. Você é egoísta"

Tiro o lixo, recolho minhas coisas, pego as chaves e a carteira de motorista
"Você não tá pronta pra isso"

E dirijo.
"Você acha mesmo que gosta dele? Talvez você não goste, talvez só esteja forçando a barra"

Escrevo, trabalho, estudo. Ele manda mensagem. Sorrio, involuntariamente.
"Quanto tempo isso dura? Até você explodir, sufocar?"

Corro pra casa, espero que ele chegue
"Seu corpo é horrível, seu rosto é horrível, paixão não dura pra sempre"

E ele chega, sobe as escadas, me dá um beijo gelado que eu correspondo
"Corresponde? Tem certeza?"

Ele me diz que gosta de mim, usa palavras bonitas, adjetivos brilhantes demais
"Você não é tudo isso"

Toca o meu corpo e olha pra mim como se eu fosse única no mundo
"Ele não sabe o quanto você é especial e capaz de destruir tudo o que é bom"

Depois levanta e diz que vai pra casa
"Ele não vai mais voltar"

Me promete que volta depois, que quer voltar, que quer ficar
"Mentira"

Desce as escadas e vai embora
"Ele vai te magoar. Ele mente. Ele já se cansou de você. Você não vai conseguir mantê-lo interessado pra sempre. Você é doente. Ele está com raiva de você. Ele não gosta mais de você. Você não pode demonstrar o quanto gosta dele. Ele vai contar pra todo mundo. Ele vai se cansar rápido de você. Ninguém nunca vai gostar de você. Ele sabe. Você é anormal. Nojenta. Existem garotas melhores. Mais bonitas. você não é inteligente o bastante. Você acha que consegue? Você mente. Vai ficar sozinha. Ele sabe. Você machuca as pessoas. Você precisa ficar sozinha. Você é venenosa. Sozinha"

Eu durmo.

O celular desperta.
Começa tudo de novo.

41x06 Um certo capitão

Imagem: TingTing Huang

Era uma vez
Bom, eu queria contar a história toda.
Mas não há tempo pra histórias longas, vocês só precisam saber que, um dia,
um certo capitão veio até a minha casa, me levou pra longe e me trouxe de volta.
E eu já não era a mesma.
Eu já não queria ser a mesma.
Eu queria ser dele, mas não sabia disso.
Levei um certo tempo pra perceber, enquanto ele já sabia de tudo, ele sempre sabe de tudo,
e me levou pra jantar,
pra ver o mundo pelos olhos dele,
entrou pela minha porta, tirou os sapatos, a camisa, minhas roupas,
minha vergonha,
e beijou a minha boca com tanta sutileza, tanta vontade e tanto medo que não podia ser diferente disso.

Ele despiu seu uniforme, arrumou meus lençóis e deitou no canto da cama, trouxe comida e escova de dentes,
foi embora prometendo voltar,
e voltou.
Várias vezes, deixando seu cheiro pelos cantos, marquinhas pequenas de mordidas, copos na pia, passos na escada,
o travesseiro na cama, a ausência marcante no silêncio do apartamento.

Voltou e trouxe qualquer coisa de fora, qualquer coisa que eu não sei como se chama ainda, ou que eu não quero saber como se chama, que me deixa calma e feliz e otimista e esperançosa e feliz e invencível.
Voltou e trouxe consigo essa coisa específica, exclusiva, que vai além das milhares de pintas que se espalham pelo seu corpo, da capacidade (terrível) de imitar vozes e onomatopeias e de criar mundos e pessoas, uma coisa cujo nome eu também não sei, mas que tá no tom da voz dele quando ele me diz coisas incríveis, quando falamos sobre o futuro, tá nos olhos dele quando ele olha nos meus, na respiração, no gosto da boca, no calor do corpo, no cheiro do quarto, tem alguma coisa
que só ele tem, algo relacionado a essa lua em virgem, sol em áries, gente que nasce em minas, que abraça gostoso como o quê.

Eu tento entender, explicar, dou um passo pra trás e ele me puxa pra perto, ele me promete que vamos mais devagar, mas a gente corre mesmo assim, porque é certo e é bom, ele fica pra dormir e eu não quero que ele vá embora quando a manhã chegar.
Evito palavras, fico com medo do mundo e de mim, mas ele entrelaça os dedos nos meus e eu simplesmente sei que ele não vai fugir quando as coisas ruins começarem a acontecer.
A gente se beija e eu não quero mais voltar atrás.
Mas eu também não sei seguir em frente.

Ele me diz que eu posso fazer o que quiser. Da vida, dele.
Eu faço cafuné, pego um cílio caído do olho dele e fazemos pedidos
Peço pra gente ser feliz.

às vezes, eu ganho.
às vezes, ele ganha.
às vezes, ninguém ganha.

E eu fico assustada,
morro de medo de que isso queira dizer que a gente não vai dar certo, eu vou cagar tudo em breve e ele vai correr pras colinas ou vai acabar machucado e sozinho.
Aí eu olho pra ele assustada, e ele tá me olhando de volta.
Com aquele sorriso enigmático ou com aquela cara de "caralho, como você é linda". E eu não sou linda, eu não sou nada, eu sou só eu. Mas, ainda assim,
isso não faz diferença.

Nem o cílio,
nem as previsões do horóscopo ou o Rei de Espadas ou as milhares de coisas que podem dar errado.
Porque eu quero que dê certo.
Holy shit, eu quero que dê certo.

Ele me pergunta "O que foi?"

Eu tô pensando se isso é o que eu acho que é.
E tô achando que pode ser, mas não vou te contar isso agora.
Isso pode esperar, a gente tem todo o tempo do mundo.

- O que foi? Fala.
- Nada, eu respondo.

E você podia insistir, você sabe que, se insistir, eu vou inventar alguma coisa, talvez até conte a verdade, mas não quero ainda.
Então você dá de ombros
e me beija de novo.

E tudo fica bem no mundo.

41x05 That stream of dopamine

Imagem: TingTing Huang

Você quer ficar.
Entra, arruma a cama, a porta, as cortinas e deita na cama, como se já o fizesse há anos.
Minha cama,
nossa cama,
você deita,
com suas pintas, seu cheiro, dá aquele sorriso capaz de derreter geleiras e eu me apaixono por você de novo.

Eu me apaixono pela primeira vez em que você diz que tá apaixonado, porque eu tô com tanto medo de usar essa palavra,
e aí você usa e eu só quero dizer toda hora

Ei, vai com calma,
vocês só ficaram 5,6, 7 vezes

E eu quero de novo.
Quero te ver chegar de mochila pra passar a noite,
bagunçar o seu cabelo e sussurrar no seu ouvido.

Eu tô apaixonada pelas suas pintas em lugares inapropriados,
pela sua insegurança
pela sua voz
seu sorriso
e pela maneira como você come um sanduíche.

Tô apaixonada pelo seu perfil enquanto dirige,
pelo som da sua voz,
seus dentes e suas covinhas
pelo seu silêncio
e pelas coisas que eu desconheço.

Tô apaixonada pelos momentos em que você me diz que eu sou incrível,
porque eu te acho incrível demais,
brilhante,
adorável,
lindo,
bizarro.

Tô apaixonada pela visão do teu corpo pela manhã,
pela maneira como nossas mãos se encaixam,
pela sua família inteira,
pela sua imaginação
e pela maneira como você se expressa.

E pelos seus olhos.

Meu deus, seus olhos, sua boca.

Eu tô apaixonada e isso é bizarro, impensável,
irresponsável,
idiota,
eu nem tenho tempo pra isso.

Eu podia me sentar, respirar fundo, esperar passar
Não
Não quero

Pego meu casaco, desço as escadas e vejo sua silhueta atrás da porta
Eu podia dar meia volta, é.
Mas escolho descer as escadas o mais rápido possível, te tirar da noite escura e te colocar pra dentro.

"É dopamina, eu sei.
Vai passar, eventualmente.", eu penso

"Oh, cala a boca, B. Só abra a porta, abra a maldita porta", diz a outra B,
e eu acho sensato obedecer.

41x04 Dollhouse

Imagem: TingTing Huang

Oi, meu amor.
Como cê tá?

Tá feliz, ela.
Me diz que comprou uma calça nova. Tá trabalhando bastante. Me conta histórias engraçadas sobre a vida dos outros, nunca sobre a dela. E eu, burra, cega.
Eu só vi o que eu queria ver, não é? Eu não vi o que você não queria que eu visse.

Ou eu vi?
E fingi que não.

Eu não vi quando ele te fez sentir doida, você vestida de boneca, arrumando a casa e tentando explicar pra ele que o seu ponto de vista também era válido, e ele gritou e gritou, cada vez mais alto, enquanto a sua voz ficou mais baixa até sumir.

Onde é que eu estava quando ele disse que você era louca? Vagabunda, prostituta? Quando ele disse isso na frente da sua mãe.
Na minha frente.

Onde é que eu, onde é que o feminismo que eu tanto prego foi parar nessa hora?

Cheguei pra te ver, te dei um abraço e você sorriu, mas eu coração estava escuro e murcho,
você tinha recém sofrido mais uma humilhação, só mais uma, mas tá tão acostumada a esconder de mim que seu sorriso não saiu do rosto nem um segundo sequer.
Eu te amei, mulher.
Eu amo sua força, seu caráter.
Mas não se esconda de mim.

Você é forte, independente
mas não quer ficar só.
Só com quem?
Você não consegue ficar consigo mesma?
Então fica comigo.
Ou aprende a se gostar.

Quando você diz não,
é não?

Por favor, não me diga que acredita quando dizem por aí que você tirou a sorte grande porque ele te quis.
Por favor, não me diga que se importa quando dizem o quanto ele é ótimo, porque sabemos que as pessoas só veem o exterior da casa de bonecas que vocês construíram, cujos tijolos e azulejos ele colocou com tanto carinho pra te prender lá dentro, pra te fazer sentir pequena e inútil, dependente e fraca.

Você tá conquistando o mundo,
chega na minha casa dando risadas altas e me contando coisas e eu percebo que não nos vemos há séculos,
aí ele te liga, pergunta sobre o seu dia
e você mente,
mesmo sabendo que não fez nada de errado.
Morro um pouquinho, mas não digo nada.
Porque sempre foi assim.

Sempre foi assim.
Tanto que eu até me acostumei.

Uma amiga me perguntou se eu gostava dele.
Eu me lembrei do seu ex, aquele ser monstruoso e nojento, que eu mataria com minhas próprias mãos, não fossem elas tão pequenas à época.
E eu disse que ele era ok.
Mas ele não é ok só porque é menos pior.

Você merece mais.

Você sempre merece mais.

Você conversa com as pessoas,
conta coisas,
e ele não suporta seus segredos.
Ele não suporta sua vida, sente vontade de costurar juntos os dois, sua boca aos ouvidos dele
e isso me assuta.
Eu tenho medo da prisão que é uma vida sem a opção de guardar segredos. De ser um indivíduo pleno.

Eu tenho medo
Das coisas que devoram crianças no escuro,
e dos olhos de quem ainda não dissocia o bem do mal.
Eu tenho medo das vezes em que eu quis que você ficasse calada.
E das vezes em que achei que você fosse a culpada.

É normal se sentir assim só porque todos os seus relacionamentos foram assim?
Não.
É normal que relacionamentos sejam assim?
Não.
É culpa sua? Você vai atrás de homens assim?
Não.
Sua personalidade sempre vai atrair homens ruins?
Não.

Nada disso é verdade.
Você é linda. Incrível. Existem homens bons. Homens que vão amar você. Que vão se apaixonar por você. Que vão te tratar bem. Que vão cuidar de você, sem tirar sua independência. Vão se apaixonar pela sua vida e pelas suas histórias.

Tô sentada na mesa, pensando.
"Em briga de marido e mulher não se mete a colher",
mas eu tô vendo,
eu tô ouvindo,
eu tô vendo.

Como você quer que eu ignore?

Eu finjo que ignoro porque acho que é o que você quer que eu faça, mas eu não vou mais fazer isso.
Eu não vou mais.
Você chora e veste sua roupa de boneca, prende os cabelos, pinta o rosto e sai pra mostrar pro mundo que está tudo bem.
Quer que eu mostre.
Mas não tá tudo bem.
E eu não quero mais trégua.
Eu quero você longe daqui.
Lá em casa, ou em qualquer lugar onde ele não possa te alcançar e te podar.

Vocês brigam e ele dá um soco na porta.
Mas ele não dá um soco em você, você me diz.
Tudo bem enquanto for na porta, Maria?
Não. Ele deu aquele soco em você.
Aquela porta é você.
Aquela porta amassada é o jeito como ele diz que conseguiria amassar seu rosto da mesma maneira.

Ele sorri para o público.
E nem parece o mesmo homem que grita e chuta as portas, grita tão alto que a rua toda ouve, a rua toda sabe.
O prédio todo sabe, mas você é teimosa e continua fingindo, com a cara mais lavada, que nada aconteceu.

Ele vai embora,
ele promete te tirar tudo, tudo pelo que você trabalhou, mundos e fundos,
ele volta.

Eu não digo nada, mas você vê.
Você vê nos meus olhos.

Pensa que tô decepcionada com você.
E eu não digo nada, eu sou covarde.

Eu não tô decepcionada com você.

Eu tô decepcionada comigo.

Eu tô decepcionada com o fato de que não pude me levantar e enfrentá-lo por você,
ou te sacudir os ombros e dizer umas verdades,
eu tô decepcionada com o fato de que eu não percebi isso antes, tão ocupada que estava em te ajudar a criar essa mentira de que estava tudo bem.
Nunca esteve,
e eu to decepcionada com o fato de que eu não te peguei pela mão e disse "Vamos embora".

Eu quero fazer isso.
E tô morrendo de medo
de que você diga que quer ficar,
que isso é amor,
que é o que você quer.

Por favor, não fique.

Você merece mais.
Muito mais.

Só precisa perceber.

41x03 Happy pills

Imagem: TingTing Huang

Eu queria me preocupar com as consequências, eu queria,
mas eu só consigo me preocupar com a hora em que você vai chegar pra dormir comigo.

Queria me preocupar com os sentimentos das outras pessoas, mas só consigo pensar em jeitos novos de encostar minha boca na sua.

Queria me preocupar com roupas e meu cabelo bagunçado, mas só quero mesmo é passar a perna por cima do seu corpo e te abraçar apertado.

Queria me preocupar em engordar demais, mas quero mesmo é que você me convide pra jantar e pra tomar sorvete.

Eu queria não querer tanto beijar a sua boca,
mas aí você chega e derrete meus muros de gelo, e aceita meu labirinto,
brincamos de Marco Polo pelas galerias subterrâneas e, quando eu me percebo, tô correndo pra te encontrar mais rápido, mais cedo.

Porra, eu queria dar um basta nisso, queria te explicar que eu sou undateable, eu sou horrível, monstruosa, ciumenta, triste e infeliz,
eu derrubo barcos,
destruo mundos.
Mas eu não quero te afastar, eu quero você mais perto,
eu quero o seu sorriso absurdamente infantil e fofo, eu quero não ter medo de mais nada.

Minto, queria ter medo do que as pessoas vão dizer,
de como vão enxergar isso que tá acontecendo,
mas eu só quero não soltar sua mão.

Eu tô feliz, horror dos horrores.
Eu tô muito feliz.
Você me faz feliz.

E isso é absurdo,
bizarro,
esquisitíssimo.

E maravilhoso.

Eu não quero outra coisa, não quero viver de outra maneira.

E eu queria me preocupar com o final dessa história, como momento em que você vai embora, mas ei
Obrigada
Obrigada por existir agora.
Por hoje.

O resto a gente vê depois que o efeito da dopamina passar.

41x02 Pra você dar o nome

Imagem: TingTing Huang

Eu tenho que escrever sobre você.
Tanto, tanto. Uma temporada inteira sobre os últimos dias.

Eu tenho que escrever sobre o seu suéter de azul, o seu carro e noites frias demais.
Tenho que escrever sobre o quanto você fica feliz quando come frutas cobertas de chocolate.
Sobre a primeira vez em que eu pensei "E se?" sobre nós dois.

Papa, Lhamacaco, lhamas e macacos.

Seu garoto estranho, maluco,
eu tenho que escrever sobre nossas conversas bizarras fora do horário comercial, sobre "The edge of seventeen", sacrifícios, Hip to be square, substância cinzenta e doritos.

Também sobre frango xadrez e todas as garotas que você já beijou na boca.
Sobre seu gato e os pelos dele que se infiltram nas suas roupas. Tô bem feliz por não ser alérgica.

Sobre todas as viagens noturnas de carro, sobre colocar a cabeça pra fora da janela, minhas tentativas frustras de não pensar no quanto era bom ficar perto de você.
Sobre temaki, o verão, chocolates, peixes dourados, empurrões. Sobre o jeito como você me deu as costas, pulp fiction e a tarde em que eu não fui com você pra qualquer lugar.

Eu quero falar, eu não quero só escrever, eu quero contar histórias sobre filmes, frio, sorvetes, colheres derretidas, canecas mágicas com água, sobre o seu rosto e o primeiro gosto da sua boca na minha, sobre a familiaridade e estranheza de tocar o seu corpo no meio da noite e sob as primeiras luzes da manhã, sobre as conversas que temos antes de dormir enquanto tentamos não dormir.

Quero sair por aí criando poemas, espalhando felicidade e contando pras pessoas sobre as coisas que fazemos na penumbra. Quero escrever sobre a poesia da sua mão na minha, a sua expressão quando toma sorvete, as nuances de cores do seu rosto e das suas costas, o tom engraçado da sua voz e suas histórias.
Quero criar histórias sobre cada detalhe do seu corpo e me assustar com a nossa intensidade bizarra. Eu quero acordar com você, eu quero voltar pra casa, pra você e eu quero não ter medo disso.

Somos intensos, somos malucos, e isso é lindo.

Eu tô com medo, eu tô sempre com medo,
mas não quando eu tô com você.

Isso é novo,
isso é bom,
isso é belo,

sensacional.

41x01 Tempestades

Imagem: TingTing Huang

É exatamente por isso que eu não posso gostar.
Marte e plutão,
eu não consigo esperar.

Eu quero você agora.
Eu quero teu rosto cortado pelo frio.
Agora ou nunca.

Eu quero poesia, luzes, estrelas,
o seu mundo inteiro,
eu não quero migalhas.

Eu sou intensa.
SIM
Eu sou do tipo que quebra pratos,
eu empurro você contra a parede e te digo que devemos pular.
Vamos pular.

Você não pode vir,
se não puder vir por inteiro.

Eu sou uma doida furiosa,
incorrigível,
incurável,
eu quero amor,
eu quero paixão,
eu quero gritar por aí o seu nome,
eu não quero nada morno.

Eu quero agora,
eu quero escuridão,
eu quero luz pura,
não tô pronta pra estabilidade,
eu quero explosão
eu quero mais.

E eu sei que isso não é possível,
não é humanamente possível.

Então não venha.
Por favor,
 não venha.

Eu tô bem sozinha,
estável,
quase ok.

Mas se você vier,
elétrico,
raio,
furacão,
trovões,

tem que ser pra se afogar em mim,
naufragar,
não consigo lidar com meios termos,
nem com gente que só quer molhar os pés.

Se você vier,
tome fôlego:
vai doer.

40x20 Flores da estação (Season finale)

Imagem: TingTing Huang

Era uma vez um livro sobre o tempo.
Em algum lugar, existe tempo pra tudo.

Tempo pra aceitar mudanças, tempo pra dormir, pra assistir seriados.
Tempo pra comer.
E pra cozinhar o que se come.

Existe tempo pra irmãs.
E tempo pra amigos.
Tempo pra fazer as pazes,
tempo pra dizer verdades.

Existe tempo pra ler os livros empilhados nas estantes.
E pra arrumar o quarto.
Tempo pra assistir as séries na ordem alfabética, e pra sair da ordem.

Existe tempo pra aprender sobre pancreatite.
E pra aprender sobre psicofármacos.

Existe tempo pra escrever artigos,
histórias,
posts,
projetos.

E tempo pra tomar sorvete.
Tempo pra esperar que você diga que gosta de mim,
tempo pra decidir se eu gosto de você.
Tempo pra me apaixonar,
e desapaixonar.
Pra beijar sua boca,
pra beijar outras bocas.

Existe tempo pra segurar sua mão.
Existe tempo pra ficar com frio do seu lado,
e pra me consertar o bastante pra ficarmos juntos.
Existe tempo pra que eu me torne a pessoa que você quer que eu seja.
Existe tempo pra que você perceba que gosta de mim sem que eu precise mudar nada.

E existe tempo pra que eu me apaixone por gente que já sabe que eu não preciso mudar,
por gente que gosta de quem eu sou.

Existe tempo pra dançar,
pro calor,
e pra se afastar de quem quer cometer erros.

Existe tempo pra entender melhor
pra cometer erros
pra perdoar erros,
pra não perdoar erros.

Tempo pra terminar e não querer mais saber de amor,
tempo pra só querer saber de amor.
Tempo pra querer você o tempo inteiro,
tempo pra odiar sua existência.

Existe tempo pra conhecer seu rosto, seu corpo
suas mãos
E tempo pra te dizer que não quero mais,
ou que nunca quis.

Tempo de te puxar e beijar sua boca com toda a força de todos os sentimentos guardados desde sempre,
e tempo de perceber que não é bem isso o que eu queria.

Tempo de me aventurar pelo mundo,
e de só querer dormir a tarde inteira do seu lado.
De ser má,
de ser boa,
de ser robô,
de ser humana.

Eu não sei que horas são.
Nem o que acontece agora.

Eu queria muito saber, queria ter a convicção,
a firmeza de caráter de alguém que sabe que é você
que é você e mais ninguém,
que vai me fazer sair de casa numa noite gelada de julho pra qualquer coisa
qualquer coisa

Mas eu penso nisso, e meu estômago aperta,
cheio de comida, borboletas e de "e se?"s, sacolejando, gelados.

Vamos ter que esperar pra ver.
Isso me cansa, é.
Mas eu não sei fazer outra coisa.

Não sei nem se existe outra coisa.

40x19 Bad Juju

Imagem: TingTing Huang

Bad Juju: any action that has a harmful or bad vibe to it.

- O que você disse?
Eu não ouvi.
Eu estava bêbada.
Ou não?

Tem alguma coisa errada,
eu acabei de tremer.

Me distraí olhando suas sobrancelhas,
eu simplesmente gosto delas,  eu gosto do jeito como você morde o lábio inferior,
eu gosto do jeito como você repara em tudo e eu tô perdida demais não reparando nada.

Bad juju, você diz a coisa certa, você faz todas as coisas erradas do jeito certo,
bad juju.

Eu tô dando risada tão alto que meus ouvidos explodem,
eu tô feliz.
Bad juju.
Então eu me viro pra você,
você mexe a boca e eu não sei se entendi direito,
mas você estragou tudo, você estragou tudo porque eu não te disse que podia dizer isso.

Bad juju.
Eu tô quebrando garrafas,
eu quebro garrafas porque tô confusa
porque não sei o que vai acontecer amanhã.
porque eu tô ansiosa,
porque eu tô zangada
e feliz.

Aí eu acordo, no meio da noite,
numa casa que não é minha
e você tá olhando pra mim
e eu não quero magoar ninguém,
eu quero dizer isso
mas eu tô te magoando se disser,
eu tô te magoando se não disser.
Bad juju.

Eu acho que me desapaixonei por você.
Isso é bom, isso é lindo,
isso é mágico.
Fell out of love.
Você diz boa sorte,
eu digo boa sorte,
mas o fim da minha frase se estende e caminha atrás de você.

Eu dou uma risada tão alta,
eu tô tão feliz
que isso tem que ser errado de alguma maneira.

Ou será que não?
Ou será que tá na hora de eu me importar um pouco menos com toda essa bagunça de regras e consequências e
saltar?

- You are bad juju, girl. - diz a voz na minha cabeça - Bad, bad juju.
Eu sei.

- Você quer fazer alguma coisa agora?
("You are bad juju, girl. Bad, bad juju")
- Não

Eu quero.
Eu realmente quero.
Eu quero retirar o que eu disse, vou ir pra casa e bater a cabeça na parede.
Umas 100 vezes.
Mas eu não retiro.

Porque eu ainda não sei o que isso quer dizer.
Eu não faço a menor ideia.
Só sei que é assim.
Só sei que sou assim

Bad, bad juju.

40x18 14

Imagem: TingTing Huang

Você fez de novo.
Eu tô ouvindo a sua história, palavra por palavra, e aí você diz essa coisa, essa coisa familiar que me faz pensar
"Here we go again".

E isso me assusta.

Eu não quero isso de novo.
Eu quero e não quero estar de novo em uma montanha russa, sentir frio na barriga, borboletas no estômago, eu quero segurar a sua mão, eu quero tocar suas sobrancelhas,
mas eu não quero te machucar.

Eu não posso ser essa pessoa.
Eu não posso ser quem vai te machucar dessa vez
e eu não sei se posso ser quem não vai.

Tenho medo das brigas que ainda não tivemos,
de que não valha a pena,
tenho medo da sutileza no final das suas frases e do jeito como é confortável passar a noite com você,
eu tenho medo da textura do seu rosto e da estranheza de um nós dois.

Eu gosto de mim.
eu gosto de só.
Do caos, eu não preciso de heróis,
eu não preciso de você,
eu posso passar sem isso.

Sem saber o gosto da sua boca,
sem me tornar uma história que você vai contar pra alguém em uma noite fria,
uma das pessoas que espero que uma garota um dia respeite e reverencie,
não com ciúmes, não pra se sentir insegura
pra pensar
uau, elas trouxeram você aqui.
Elas trouxeram você agora, assim, meu.

Eu me encosto no banco do carro, escuro,
tão escuro,
e eu não tenho certeza se vale a pena.

Talvez eu tenha medo de que seja bom,
que beijar você seja uma estrada sem volta,
talvez eu esteja com medo de admitir que finalmente segui em frente,
talvez eu esteja com mais medo de me machucar do que de te machucar,
talvez eu esteja com medo de quem eu me torno quando gosto de alguém

tantas possibilidades,
tantas razões lógicas pra ficar assustada
e a minha cabeça rebate todas com a sua voz, dizendo "Foda-se", do seu jeito extremamente infantil e bizarro.

Eu não sei o que fazer,
eu não quero ter que decidir sozinha,
não me deixe decidir sozinha.

Digo isso, mas tô com a impressão estranha:
já tá tudo decidido.
Você também acha isso?

40x17 Throwaway

Imagem: TingTing Huang

"Isso não é real. Nada disso é real. Você não é real. Eu não sou"

Estamos sentados, esperando, no centro do mundo.
O vento sopra as cortinas, fresco, cortando o dia quente e o silêncio da manhã, o sol ilumina o quarto apenas o bastante pra que possamos olhar um pro outro.
Estamos assustados, mas eu tô feliz aqui.
Vai acabar logo.
Estou ouvindo.
Os sons de risada, as vozes das pessoas.
Ele aperta a minha mão.
Tenho 36 anos.


Acordei cedo e fiz o café.
Era domingo.
Eu olhei para o jardim e pensei que, talvez, devesse aprender jardinagem.
Plantar flores e algumas ervas. Tomates. Definitivamente, tomates.
Ele poderia me ajudar, quando estivesse melhor.
Suspirei.
Provavelmente, seria mais um dos nossos projetos inacabados.

Sacudi a cabeça.
Eu deveria estar escrevendo.
Mas o dia estava tão bonito, parecia até um dia de mentira.
Mentira.
Todos aqueles dias eram de mentira, ele dizia.

Subi as escadas e fui até o quarto do bebê.
Ele dormia chupando o dedo, inocente, não sabia de nada sobre o que acontecia ao redor.
Movia as pernas como se sonhasse.
Com outras vidas, talvez.

Fui para o nosso quarto e as janelas já estavam abertas.
Você estava lá. Acordado, esperando, sempre esperando.
Sentado, quieto, magro, sujo, barbudo, despenteado, assustando nossos amigos e familiares, me assustando.
Você me olhou quando entrei e vi que estava envergonhado.
Eu te peguei no pulo, de novo, e nós dois sabemos, sem precisar dizer, que você está torcendo pra que tudo acabe.
- Você tomou seus remédios?
Você sacode a cabeça, não tomou. Não tem tomado.
- Você não vai tomar?
De novo, você sacode a cabeça. Suspiro e me sento na cama, de costas pra você.
- Você não pode tentar de novo?
- Tentar?
- Tentar. Tentar ser feliz. Éramos felizes. Ainda podemos ser.
- Não consigo. Não quando eu sei que nada disso é real, não quando eu sei que vai acabar a qualquer momento.
- Talvez não acabe. Talvez só acabe quando --
Desisto.
Já tivemos essa conversa.
Já argumentei tantas vezes. Sobre vida e morte.
Além disso, o médico já me disse para parar de dizer a palavra morte. Risco de suicídio, ele dissera. E, mesmo assim, contra as ordens médicas, contra toda a lógica, eu te trouxera pra casa, onde você podia delirar a vontade.

Olhei para o seu rosto e você continuava em silêncio, observando o sapato.
O maldito sapato.
Olhei pra ele também, considerando finalmente te internar, jogar aquela coisa maldita fora,
aí percebi que algo estava errado.
Algo estava muito errado.
Eu olhei à minha volta, meu estômago afundou, eu senti algo, um pressentimento, um foi como se estivesse sendo sugada pra fora de casa, como se minha vida estivesse desaparecendo aos poucos.
Eu pude ouvir um barulho desconhecido e familiar de pássaros, panelas, carros. Cheiro de canela. O barulho de portas abrindo e fechando, passos na escada.

Tentei me recuperar, mas a sensação não passava.
Não era real.
"Existe outro lugar, além do aqui e agora", você dissera.
Olhei pra você, assustada, e você me olhava, ansioso.

- O que acontece agora?
- Esperamos.

Eu me sentei ao seu lado, apertei sua mão e ficamos juntos, olhando.

Em algum momento, o bebê acordou, chorando,
e nenhum de nós se mexeu.
Ele chorou,
chorou,
chorou

e então, afinal,
silêncio.

Esperamos.

40x16 Paint it black

Imagem: TingTing Huang

Disse em voz alta a nossa senha secreta e esperei.
Mas você não veio, você nunca veio.

Estava com as malas prontas, paguei as contas, arrumei a casa e deixei bilhetes.

Acendi um cigarro, porque é o que eu faço quando não sei o que fazer. Eu nem fumo.

Eu estava sempre com medo.
Mil armas apontadas pra minha cabeça e eu  só conseguia pensar no que ia acontecer depois daquele agora.

Eu pedi sua ajuda, mais alto, mais alto, mais alto, mas você nunca veio, estava tarde, eu estava com frio, com medo do que acontecia no escuro.

Ouvi um ruído e os pelos da minha nuca se eriçaram.
Olhei na direção da noite escura e eu soube
ele estava lá, me esperando, me chamando, me cantando pra ele.

Eu não queria mais fazer aquilo.
Eu precisava que você viesse me salvar.
Mas você nunca veio.

Alguma coisa brilhou no escuro e ele me chamou, numa voz rouca, cantou meu nome, meu nome, e eu tentei resistir à vontade de correr até lá e me jogar na escuridão.

Gritei nosso código, repetidas vezes, na esperança de que você finalmente ouvisse, mas você nunca o fez.

Ninguém nunca veio, eu era de novo uma criança sentada de castigo no escuro, 1 2 3 4, esperando que alguém viesse me pegar no colo e me levar embora. Mas ninguém nunca veio.

Eu gritei até perder a voz, até aceitar que você nunca viria,
que ninguém viria.
Até aceitar que eu seria meu próprio herói.

Ele me chamou, do escuro, quente, vivo.
Eu já era adulta, então, adulta em um corpo de criança,
pronta pra matar ou morrer, sozinha no escuro.

Eu podia viver fugindo,
eu podia me render, de novo e de novo, deixar que ele me machucasse até não sobrar um pedaço intacto, até não sentir mais dor.
Eu podia deixar.
Eu podia continuar te chamando.
Então cortei minha língua, tirei minhas roupas e me joguei no escuro, que me acolheu como uma filha pródiga.

Eu me lembro de encontrá-lo na escuridão
ele emanava calor, medo, dor, confusão
e arranhava meu rosto,
partia meus ossos,
fazia meu sangue frio jorrar,

Eu me lembro do cheiro da madeira, da textura da escuridão, da maneira como ele chamou meu nome enquanto eu o rasgava em pedaços, com os dentes, com as unhas,
enquanto o acertava com pedras
enquanto cortava seu rosto.
Eu me lembro de tudo.

De cada palavra,
cada grito,
do exato momento em que você,
desesperado,
repetiu as palavras que eu passara séculos pronunciando,
nosso código secreto.

Era você.

Você estivera ali o tempo todo,
me chamando,
tentando me salvar.

Apalpei seu rosto úmido de sangue,
enquanto você repetia nosso código, feito uma prece.

Toquei seus cabelos, testa, olhos, nariz, boca, queixo, pescoço.
Você me chamava.
Você precisava de mim e eu estava ali por você.

Segurei sua cabeça, firmei seu corpo com com meu próprio peso e quebrei o seu pescoço,
com um movimento seco,
breve.


Não preciso mais de heróis.

40x15 Eritrofobia

Imagem: TingTing Huang

- Quando eu te conheci, achei que você não gostasse muito de mim haha - ela diz.

Eu não gosto de você.
E você provavelmente nunca vai saber.

Eu não sou boa em expressar sentimentos complexos.
Parece raiva, mas é só euforia. Parece amor, mas é tristeza. Parece desprezo, mas é amor. Parece carinho, mas é absolutamente nada.

De tanto cometer erros de expressão que levaram a erros grotescos de interpretação, parei de expressar sentimentos complexos.
Assim, desisti.
Guardei, no silêncio de mim, as palavras que eu nunca pude te dizer, as palavras que você nunca vai ouvir da minha boca.

Eu detesto muitas pessoas.
Pessoas demais pro meu próprio bem, e eu sofro mais com isso do que elas.
Pense bem:
Em alguns dias, eu me sento com a pessoa que detesto. Conversamos. Eu a ajudo, aconselho, eu faço o possível pra que ela fique satisfeita.
E isso me mata por dentro, me apodrece aos poucos, pedaço por pedaço, necrosa, e eu não digo nada.
Não porque sou falsa, eu não prometo a ela amizade eterna ou favores inestimáveis, não saímos juntas, não nos visitamos.

Mas então, por que não digo a ela
eu detesto você?

Porque é complexo.
E eu não expresso sentimentos complexos.

Aprendi cedo que expressar sentimentos é complicado.
É difícil voltar atrás.
É difícil prever as coisas, é difícil lidar com as consequências.
Sempre preferi esperar passar.

Passa raiva,
passa a paixonite,
passa tudo e eu fico,
em silêncio,
sentindo dor e tentando não deixar a mágoa me cortar demais,
tentando não sangrar na frente dos outros,
ou descontar nas pessoas erradas.

Mas é difícil.
Então eu tento mesmo ficar em silêncio,
vai passar
vai passar

Mas nem sempre passa.

E aí eu tenho que dizer.
Eu simplesmente tenho que dizer,
porque só dizer pode consertar as coisas, certo?

Então eu digo.

Depois de muita hesitação, depois de sangrar centenas de vezes,
sempre na frente de outras pessoas,
eu tô dizendo.
Eu tô dizendo pra consertar as coisas, não pra quebrar de vez.

Mas nunca sai como eu gostaria.
Se eu tô tentando consertar,
você me ouve como se eu tivesse dito que acabou, eu não quero mais ouvir a sua voz, eu não quero mais te ver nos corredores ou estar no mesmo ambiente que você.
Você foge, escorre entre os meus dedos e
eu não quero mais dizer nada.

Eu não vou mais dizer nada.

Nem pra você,
nem pra ela.

- Quando eu te conheci, achei que você não gostasse muito de mim haha - ela diz.
- Ah, é? - sacudo a cabeça, rio.

Mudo de assunto.

40x14 Fora de contexto

Imagem: TingTing Huang

Caro Pégaso,
escrevo aqui porque não posso te ligar pra dizer o que tô pensando.

Quero dizer, até posso,
você até gostaria que eu o fizesse, mas não o farei.
Porque não faria sentido,
e porque escrevo mais pra mim do que pra você.

Uma amiga me perguntou
"Como foi que você conseguiu superá-lo?"
E eu não soube responder na hora, mas pensei um pouco e agora sei a resposta.

Eu consegui superar você quando percebi que não é assim que funciona.
Não se apagam as pessoas das nossas memórias como se nunca tivessem existido, eu jamais arrancar do meu corpo a memória do seu cheiro e do seu sorriso.
E eu também não quero mais.

Porque você esteve lá por mim,
você me ajudou, ficou comigo em uma época em que eu não podia ficar sozinha, em que ninguém deveria ficar só.
E eu sou muito grata por isso, mais ainda quando penso que, se você não estivesse lá,
eu teria ficado só.

E eu não consigo nem imaginar o que teria acontecido.

Odiar você não era a saída, nunca foi, embora tenha sido satisfatório, por um tempo.
Parte do processo.
Acho que eu precisava parar de te ver menos como o cavaleiro da armadura brilhante,
que esteve lá quando eu precisei, capaz de entender tudo e todas as coisas,
e mais como humano, uma pessoa que cometeu erros,
que comete erros, que vai cometer erros.
Não com a intenção de me magoar ou de se magoar, só porque as pessoas erram.

Eu não vou te defender,
eu não vou me defender.
Pessoas cometem erros.

Quando eu tento pensar, analisar certas coisas,
até percebo que muitos erros foram cometidos com as melhores intenções
e isso me faz sorrir, me faz pensar que, se a gente tivesse sido um pouco mais egoísta,
talvez as coisas tivessem sido mais bem sucedidas haha.

Outro dia, uma pessoa se referiu a um rapaz de quem gosto muito da seguinte forma "Ele é o novo x (você, no caso)?"
E isso me fez pensar que pessoas não são substituíveis.
Engraçado, porque eu sempre acreditei nisso.
Mas não agora, não posso simplesmente pegar outro de você e colocar no lugar porque não existem dois de você (Graças a Deus haha), assim como não existem duas de mim.
Não, existem pessoas por aí que vão nos fazer sentir muito melhor, ou muito pior.
E nenhuma delas vai tomar o lugar uma da outra.
Nenhuma delas vai nos fazer esquecer o que aconteceu.

E a melhor parte disso tudo é que eu aprendi muito.
E eu não quero esquecer nada do que eu aprendi.
Sobre moedas,
sobre mães,
famílias,
segredos,
luzes,
sexo,
literatura,
música,
comida,
sobre as costas das pessoas,
sobre o meu próprio valor,
política,
a tristeza intrínseca das pessoas,
e muitas muitas outras coisas.

Obrigada.

Espero que você esteja ok,
sinceramente.

Atenciosamente,
B.

40x13 Aquela coisa

Imagem: TingTing Huang

Eu estava andando na rua outro dia, desprotegida, sem casaco ou guarda-chuvas, usando minhas botas favoritas
e você passou por mim e me fez sentir aquela coisa.

O que é aquela coisa?

Ah, você sabe, aquela coisa, aquele conjunto de sinais e sintomas que não fazem sentido nenhum, e que você só percebe de qual síndrome fazem parte quando é tarde demais e você já não pode fazer tratamento ambulatorial.

Eu estava sentada, comendo qualquer coisa e aí eu olhei nos seus olhos e senti aquela coisa.
Aí eu sacudi a cabeça e dei aquela risada. É, aquela risada patognomônica, mas eu simplesmente fingi que não aconteceu.

Também teve aquele outro dia, sabe?
Eu fiquei sentada por alguns segundos a mais,
depois olhei pra trás quando você foi embora.

Sabe aquela coisa, aquela que me deixa com um bom humor irritante,
aquela coisa que me fez voltar a me preocupar com o estado caótico do meu cabelo, do meu quarto, do meu rosto, dos meus pensamentos, da minha vida inteira?

Sabe aquela coisa que me faz fechar a porta na sua cara sempre que parece que você vai entrar,
mas aí você de alguma forma coloca o pé pra me impedir de fechar, feito um desenho animado,
e entra e senta sem ser convidado,
deita no sofá, come toda a minha comida, enquanto eu ajeito os óculos, embasbacada, desconcertada, assustada, insegura e incerta sobre o que acabou de acontecer. Sobre o que não acabou de acontecer.

Aquela coisa que faz com que certas coisas comecem a acontecer
e tudo me parece parte de uma encenação bizarra
de uma peça que eu já fiz antes,
mas que está sendo remontada por outras pessoas.

Aquela coisa que me faz dizer umas frases ensaiadas,
umas frases que eu já até sei de cor,
e que eu não quero mais usar.
"Eu quero um texto novo, vamos pelo menos fazer isso diferente, eu não fico em casa sentada esperando,
eu te chamo pra sair,
e a gente vê o que acontece", penso, mas não faço nada, eu me sento em casa, tomo medicação pra ver se aquela coisa passa.

Mas eu acordo e aquela coisa me faz sentir vontade de falar com você,
e eu, horrorizada,
desligo o celular e vou ler um livro.
Descubro uma música nova e me pergunto---

Eu odeio aquela coisa,
aquela cosia viciante
a sensação de acelerar o carro quando você vai passar pelas tesourinhas, só pra sentir um frio na barriga,
querer te ver
não querer te ver
as cores e luzes, músicas, livros, séries
eu adoro aquela coisa

E é, eu sei,
aquela coisa é coisa minha,
começa intensa, passa rápido feito um piscar de olhos,
e eu não posso bagunçar as coisas por causa de um piscar de olhos.
Então, aquela coisa vai ter que ficar aqui, sem nome, sem definição precisa.

Certo?
Quero dizer, é a coisa certa a se fazer, não?
Com aquela coisa?

Aquela coisa, sabe?
Se não souber, tudo bem,
mas você tem que saber,
porque se você não souber

eu não quero saber sozinha.

40x12 Tennessee Honey

Imagem: TingTing Huang

Cheguei em casa, tranquei as portas, abri as janelas, cobertas pelas cortinas que te impedem de entrar.
Respirei fundo.
Livre.

Coloco o colchão no chão, eu já posso sentí-la acordando, se espreguiçando dentro de mim, como quem dormiu por anos e agora sente fome, uma fome que não cessa, de contato humano, de ouvir a própria voz, tocar os próprios cabelos.

Abro e fecho as mãos, tentando entender o movimento desse corpo que não é mais só meu,
onde eu não vivo mais só,
eu nunca estive só.

Tem um vento sutil soprando, quente, e eu danço ao som dele, passos lentos, e depois rápidos demais pra parar.

Meu corpo se move, ocupa espaços, faz uma dança bizarra e ilógica, elétrica, enquanto meu coração bate rápido, sem saber
que agora tudo pode acontecer

Eu me deito no chão e respiro,
deixando o ar entrar e sair dos pulmões,
eu sinto as pernas dela se esticarem dentro das minhas,
seu rosto tomando forma por debaixo da minha pele
enquanto eu deixo de ser eu.

Sem paixões ou sonhos,
personalidade
ou lucidez,
eu vou me apagando aos pouquinhos,
sem querer outra coisa.

Ela segura meu coração devagarinho, contém meus pulmões
e então aperta e solta,
aperta e solta
devagarinho
até que eles aprendam e repitam
até que meu coração bombeie o sangue todo do meu corpo no ritmo da canção do vento,
até que minha respiração se torne uma música assoviada

E todo o meu corpo
desliga

E reinicia
Ela abre meus olhos, os olhos dela
sorri um sorriso que não é meu
e cantarola uma canção, mais antiga do que eu,
mais antiga do que todos que já conheci,
que me lembra um sonho que tive quando ainda nem existia

E só então, quando a canção chega ao fim,
ela se espreguiça, usando meus braços
e se encolhe feito uma bola
e dorme

pra que eu finalmente possa acordar.

40x11 Uma incansável tapeação

Imagem: TingTing Huang

Então, dia dos namorados.
Faltam exatamente 12 minutos pro final do meu 24º dia dos namorados nesse mundo maluco.

Eu não tenho namorado.
Eu não estou apaixonada por ninguém.
E isso é surpreendentemente ok.
Ok, só mais um desses dias em que eu acordo atrasada, levo mil anos pra pentear meu cabelo, passo horas em filas no mercado e em lojas, só porque o sistema caiu ou porque eu saí de casa meio tarde, eu faço meu próprio jantar, dou risada de algo que a minha irmã me diz.

Sei lá, eu tô feliz.
Feliz o bastante pra encher a barriga sem culpa, porque eu fiz esse frango assado maravilhoso,
pra dormir a tarde inteira,
falar com o melhor, pior e único ex-namorado do universo sobre nada,
assistir episódios de séries aleatórias,
dar risada das piadas terríveis do melhor amigo de arco-íris que se pode ter,
terminar um livro,
e não ficar obcecada com o fato de não ter feito algo que deveria ter feito.

Tô feliz e orgulhosa de mim mesma.
É, as coisas não estão saindo como eu gostaria.
Não tenho escrito nada relevante,
ou estudado tanto quanto gostaria,
ou sido a pessoa que gostaria de ser.
Mas eu tô me surpreendendo, de um jeito bom.

Tô surpresa com a força das minhas crenças,
com os movimentos que meu corpo sabe fazer,
e com as sensações que ele pode alcançar.
Surpresa com o final das histórias que eu nunca contei,
com as pessoas e suas histórias,
as cores do céu em uma tarde de domingo,
minha incapacidade de cantar no ritmo certo ou de me apaixonar,
com o fato de que, às vezes, pessoas são só pessoas,
músicas são só músicas,
e nem tudo o que eu escrevo aqui ou no papel está escrito em pedra.
Eu tô surpresa com o fato de que quebrar minhas regras pode não significar trair tudo em que acredito,
tô surpresa com a minha coragem de falar o que sinto.
Porra, eu tô falando o que sinto, quando eu sinto.

Tô surpresa com os meus cabelos se enrolando e desenrolando
formando nós que eu não consigo desembaraçar,
e com o fato de que isso me parece perfeitamente natural
bonito até
Tô surpresa com o fato de que eu até gosto de mim.

Não só da minha companhia, de me sentar na janela e ficar
gosto dos meus pensamentos,
da minha comida,
da maneira como eu digo "Pare, descanse",
e da minha própria proteção, dessas barreiras que eu criei, nem pra me trancar, nem pra deixar de fora quem eu amo,
só pra me proteger das coisas ruins da vida.

Gosto de tentar,
acertar ou errar.
Gosto de refletir antes de julgar (nem sempre é fácil, é difícil pra caralho),
gosto de ouvir a minha voz,
gosto dessa minha nova maturidade disfarçada,
de sair e me levar por aí, no meio da noite, sim sim sim
sem saber onde vai dar
do mistério no horóscopo,
gosto de desembaraçar meus cabelos no meio da noite, sem ter lugar pra ir,
sabendo que tudo é possível.

De fechar meus olhos antes de dormir e pensar
tem alguém por aí
e não pode ser qualquer pessoa, não é mais sobre gostos comuns, ou horóscopo ou destino ou declarações de amor
porque eu gosto de quem eu sou,
do meu rosto deveras estranho,
do meu jeito repelente de homens,
das coisas que eu digo e penso

E é, eu estou pronta,
pronta para passar de novo por essa tapeação que é estar apaixonada,
uma puta quantidade de dopamina solta,
mas não dá pra ser qualquer pessoa,
a qualquer momento.

E não é que eu queira ferrar com a espontaneidade da coisa,
é que não quero magoar ninguém e isso me parece importante,
o que eu quero me parece importante
e eu gosto dessa nova B.,
gosto de querer coisas
de querer pessoas,
de querer bem.

Então tudo bem, vai ficar tudo bem.
Eu desejo um dia dos namorados incrível pra todas as pessoas, com namorado ou sem. Espero que ninguém tenha se sentido amargurado por ver um casal de mãos dadas ou um homem comprando flores, espero que isso tenha sido banal ou bonito de ver.
Eu espero que tenha sido só mais um dia, ou um bom dia.

Eu espero que,
onde quer que você esteja,
quem quer que você seja,
onde quer que você se encaixe,
esteja bem.
Feliz.
Espero que tenha sido um dia engraçado, bonito, meio poético,
quente, rápido, azul, tranquilo.

Fique bem.

Feliz dia dos namorados.

40x10 Dando moral

Imagem: TingTing Huang

Sim.

Ele fica de pé na minha frente.
É você?

Eu tô sentada na minha mesa cativa, não pedi nem água pra beber porque não sei se consigo segurar alguma coisa no estômago além de borboletas.

Trouxe comigo esse livro que não é muito pretensioso, nem muito tosco, do Doctorow (ok, um pouco pretensioso), tô vestida de azul, olhando pela porta feito uma maluca, mas você nunca entra.

Entram esses dois caras e é claro que você não traria um amigo. Porque não. Certo? Traria? Eu não sei.

Mas eles se sentam juntos, falam sobre garotas, milhões de garotas de coração partido e eu tô bem feliz por não ser uma delas.

Acho que tô adiantada.
Olho meu relógio de bolso, e ele tiquetaqueia como quem diz "ele não vem", mas aí o sininho da porta faz barulho de novo e entra esse cara, esbaforido, eufórico, ele começa a contar mil coisas, pede uns doces, e eu acho que é você, mas ele é tão, eu não sei, tão
enfim, tem algo de errado e eu não sei bem o que é, então eu o deixo ir e me sinto muito estúpida por isso.

Aí entra esse cara e ele ri muito alto, ele é incrível, brilhante e eu realmente gosto de vê-lo aqui, mas é isso? É essa a sensação certa? Por que eu estou na dúvida se é? Não era pra eu saber de imediato, simplesmente me jogar de cabeça, ou não é assim que funciona? Já funcionou assim alguma vez ou eu é que tô tentando enfiar regras novas no jogo mais antigo do mundo?

Sei lá, só sei que ele também vai embora, mas eu já tô me acostumando a olhar as costas das pessoas.

Aí de novo, ele, mas a gente já passou por isso, não?
Já? Tem certeza? Porque pode ter esse pequeno detalhe, essa coisa que você não percebeu e que vai fazer toda a diferença, que vai ser exatamente o que falta pra funcionar.
- Me conta uma história
E outra
E outra.
Mas não é isso,
o que eu quero é outra coisa.

E eu realmente queria que fosse fácil de verdade.
Mas também prefiro que não seja.
Tiro o relógio do bolso, vejo que você tá atrasado,
mas não dá pra esperar, sabe?
Eu tô faminta.

Peço pizza e como,
acompanhada,
depois sozinha
e, se você correr, prometo guardar um pedaço pra você.

40x09 Better than hugs

Imagem: TingTing Huang

Não gosto de abraços,
nunca gostei.

Meu melhor amigo tem essa teoria de que pessoas precisam de um determinado número de abraços por dia.
Eu não acredito nela.

Abraços guardam duas sensações distintas,
grandiosas demais pra desperdiçar com gente que simplesmente está de passagem
abraços são sobre chegada, reencontro.
Abraços são sobre partida.

Eu poderia distribuir beijos na boca,
mas jamais conseguiria distribuir abraços.
Não gosto que me toquem.

Distribuo abraços ébrios,
abraços de cumprimento,
pequenas demonstrações de carinho
mas abraços,
ah, abraços
esses eu guardo pra momentos específicos

Abraços daqueles em que se poderia ficar pra sempre
daqueles que a gente dá sabendo que nunca mais vai dar de novo,
abraços doloridos
que deixam parte da gente na outra pessoa.

Esse texto nem era pra ser sobre isso,
mas escrever sobre abraços me lembrou desse abraço específico
que eu te dei, sabendo que seria o último,
tão intenso e breve que eu chorei, mesmo sem saber ao certo o porquê.

Esse abraço me trouxe aqui, anos depois.
Meu Deus, quanta coisa mudou naquele abraço,
quantas escolhas foram feitas,
quanta dor
por causa de um abraço.

Então, como eu poderia sair por aí abraçando
a torto e a direito
se tanta coisa pode mudar a partir de um gesto?

Entende, agora?
Eu não quero o seu abraço,
nem o contato com a sua pele,
eu não quero o seu cheiro,
ou o que você acha que um abraço deve conter,
eu não quero dizer adeus
eu não quero dizer olá.

Eu não preciso de abraços,
eu preciso de pessoas que fiquem.

Teu abraço talvez não melhore o meu dia (já aconteceu, é verdade, mas pode piorar. Também já aconteceu),
não vai me dar vontade de estar aqui,
definitivamente, não vai significar que tudo está perdoado,
nem mesmo me fazer acreditar que você gosta de mim.

Alguns gestos são melhores do que abraços,
dizem coisas que abraços nunca dirão (muito embora eles digam muito)
e eu percebi isso quando olhei para a menina que gritava ao meu lado na sexta,
pelo mesmo objetivo que eu.

A presença dela, a existência, sua vontade, seu grito
me fizeram mais acolhida do que qualquer abraço aleatório e constrangedor.
O fato de que ela ficou, sem saber quem eu era,
pra lutar por nós duas significou muito mais pra mim do que contato físico significa.

E as pessoas não compreendem ainda.
Eu mesma demorei a entender
que o amor está nas entrelinhas.

Amor está numa viagem de carro de 10 minutos,
nos seus resumos de anatomia,
mentiras contadas sem razão,
mensagens que chegam no meio da madrugada,
uma coleção de garrafas,
no gosto do chocolate branco,
garrafas de água,
feijão.

Você não precisa me tocar pra que eu saiba.

E, por favor, não me toque sem a minha permissão.
E, por favor, não tenha medo de me tocar.

É complicado.
Mas simples.

Você vai saber, vai entender
quando chegar a hora.

Mas, até lá,
apertemos as mãos.

40x08 Of other girls in different lights

Imagem: TingTing Huang

Gosto do escuro. O escuro na sua boca, o escuro da suas pupilas, o escuro dos cantos do seu corpo, nas notas da sua voz sussurrada e nos pigmentos da sua pele e pelos.

O tom violáceo da primeira luz da manhã que vejo de dentro do seu carro, hematomas e pequenos machucados de bater em portas, quinas, e sua língua roxa depois de beber suco de uva.

Gosto da luz das lâmpadas fluorescentes refletidas nas suas unhas, da luz e sombra das curvas do seu corpo.

Gosto das luzes que piscam quando você abre e fecha as mãos, as luzes no seu rosto, nos seus dedos, o gosto de luz na tua boca, joelhos e orelhas. A luz da tua voz

A sombra da tua ausência. A luz nas pontas dos teus dedos, no teu cheiro.
A escuridão das tuas mágoas, da parte do teu passado que desconheço.

Tem luz no calor do seu corpo, tem escuridão no aconchego do seu abraço, luz na textura da sua boca, luz nas conjunções, pronomes, no teu número, nas tuas vírgulas,
e tem escuridão na sua força, nos lugares onde o nós se esconde, onde o você e eu fica guardado.

Tem luz nas suas fotos infantis, na risada infantil que te vejo dar quando você se empolga, tem luz na maneira como você abre as portas, nos seus ossos.

Em tudo isso há sombra, ganhando espaço, ganhando voz, manchando nós dois.
Luz e escuridão se chocam, discutem, se abraçam, enquanto eu observo, assustada, maravilhada,
você me diz

- Acenda a luz. Eu quero ver a sua luz também.

Eu até tento, homem,
clic clac no interruptor,
clic clac,
mas a luz não acende
não tem luz.

Eu sou o que você vê.