45x18 Trema

 

Imagem: TingTing Huang

Você vê, 
tenho sentido uma coisa estranha. É difícil explicar, um frio na barriga, o peito apertado, a boca seca, intranquilidade e a mão a tremer de leve. 

me distraio e deito, não durmo, eu não durmo nunca, mas parece que nem sequer acordei. 

Que gosto é esse, de sono ou sonho que eu sinto no café matinal. 

E que língua é essa, de mulheres e homens que soa como o sol, como os sinos, sacos e sacolas

A boca seca, mas nem sofro, só sonho alto, 
noite alta, 
mas sem dormir, eu não durmo nunca

Ou durmo? 

Não me lembro, mas também nunca esqueci, na verdade, não me lembro como se esquece. 

Tem algo aqui, na casa ou na minha cabeça, uma coisa bem pequena ou muito grande que me deixa, que me deixa
Não louca, não estou louca. 
Na verdade, nunca estive tão bem, você não vê? 

Eu não durmo e não me canso e não me canso de
eu conheço você de algum lugar
tenho certeza, certeza absoluta de que já te vi antes, 
mas tudo bem, depois eu me lembro

Nossa, que sensação ruim, parece até que
que

Ah. 
Então era isso.
Faz sentido, agora. 
Tudo faz sentido. 

Não faz?

45x17 Kindred (evil) spirits

 

Imagem: TingTing Huang

Era minha. 

Ela veio, trazida ao templo. Eu podia ouvir os gritos, mesmo de longe, do meu quarto. 

Calcei as sandálias e prendi os cabelos. Tentei parecer calma, mas, como sempre, o coração vinha à boca. 
Tenho urgência em ir, medo. Ao mesmo tempo, uma certa calma. 

Há tempos que o sofrimento não me parece urgente, como pareceu outrora. 

Acendo as tochas e faço uma prece a Apolo, secreta e única, pra que ele me guie, me tranquilize. 

Os gritos da família irritam meus ouvidos sensíveis, eu peço silêncio. 

É mais um caso de espírito maligno aprisionado no corpo de mulher, se alimentando dos seus sonhos, da sua força vital. É uma sombra e eu sou a sacerdotisa da luz, a portadora da centelha. Eu trago a cura. 

Trago-a para o centro do círculo, onde ficamos sentadas, uma de frente para a outra. 
Peço à sombra que me conte sua história e ela conta, com calma e zelo, e febre, e sonho, delicadeza, medo, raiva, angústia. Sem lágrimas, sem gritos, a sombra me explica o mundo, e as histórias dos livros, a fantasia das almas, a união dos corpos, e que a morte não é a escuridão. Ela me olha nos olhos e arde, e queima, e eu posso ver
ela dança uma música que só nós duas ouvimos. 

Ela quer sair, mas não quer sumir, não quer desaparecer. 
Quer morrer, mas quer viver. 

Estendo a mão na sua direção e vejo o medo, insisto, e ela agarra. 

Meu coração bate tão forte que parece que vai explodir no peito. Ao invés de alívio e certeza, 
sinto medo e não sei o que isso quer dizer.
Sinto uma angústia brutal, um cansaço. Uma dor. 

E acaba. Ela se levanta, sã,
um milagre. 
A família me agradece e chora, deixa oferendas, beijam minhas mãos. 
E eu atordoada, gelada. 
Ela me olha, e arde e queima, 
e dançamos em silêncio uma música, 
aquela música
que só nós duas ouvimos. 

Não sei o que isso quer dizer, 
não sei. 

45x16 Treshold

 

Imagem: TingTing Huang

Tem algo acontecendo. 
Sinto. 

Ou, eu não sei, sentir é isso? 

É um sentimento ou ideia, a textura de cinza, de pó que não é areia, uma ideia que parece grafite, suja os dedos, sem cheiro, sem gosto. 

Borboleta encasulada, ela me diz. 
E me faz pensar. 
no bater de asas contra o casulo, 

O ruído de asas, de inseto no ouvido, um som, uma sensação que é ideia ou medo (e o medo? não é também uma ideia?)

Respiro fundo, tem algo aqui. 
O gosto de um dia em que eu saí cedo da casa da minha avó,
cotovelos molhados com a água gelada da chuva, 
a cor forte do seu perfume às 6 da manhã. 

Eu sinto ou penso ou sinto o tempo expandir aos poucos. 
Tem um vento sujo movimentando as folhas do jardim. 
Tem algo acontecendo. 

Nesse universo ou em algum outro, dentro ou fora de mim, bom ou mau, ou 
nada. 

Bebo um café quente e minha língua queima um pouco na ponta. 
Do nada, chove. 
Sem relação, ou então, talvez, eu tenha agora poderes mágicos premonitórios. 

Dou risada da ideia, mas o barulho de chuva me dá arrepios. 
Ou o doce do café, 
a lembrança da sensação incômoda na língua, me distraio, e apago da mente a lembrança do limiar cruzado. 

Como se ela nunca tivesse existido. 

45x15 Bad, Beth and Beyond

 

Imagem: TingTing Huang

Amo o seu rosto, sua pele, a pele do meu filho. 
Eu amo o que quer que seja isso. 
Eu amo você. 

Amo seus caninos. E a textura da sua boca. 
Eu amo segurar a sua mão, sem apertar, como se você sempre pudesse fugir, escapar, escorregar.

Eu amo seus dias banais, seus pacientes tristes, eu amo a cor castanha dos seus olhos. 
Eu amo a sua constância. Abrir a porta e ouvir a sua voz. Eu amo a sua companhia. 

Amo as nossas conversas e seu abraço apertado. 
Amo quando você ri e quando fica triste, e quando tá animado e quando tá doente. Tenho medo quando fica chato, quando fica mal, quando tá confuso. 

Te amo 'brabo' e te amo arrependido, criativo e ambicioso. 
Te amo chegando, na saída e no meio. 

Te amo durante a viagem, eu te amo irresponsável e compulsivo, adulto e bebê. Eu te amo no futuro, sem nem te conhecer. 
No almoço, no jantar e, às vezes, no café da manhã. 
Isso é bom, isso é incrível. 

Isso é terrível. 

45x14 Teleborianism

 

Imagem: TingTing Huang

Olho pra mim mesma, de cima pra baixo, de baixo pra cima. 

Eu sou, eu era, a mãe da mulher tornou a mulher um monstro direto dos pesadelos da infância, uma sombra escura sobre o leito, fala lenta, amena, monótona. Fórmulas e fatos e questionamentos mornos. 

Eu me sento como ele se sentava, eu toco como ele me tocava.
Olho como ele me olhava, falo como ele falava, eu bato à porta como ele batia e entro na vida, valsando, e eu finjo que não quero me meter, eu

Atenta aos detalhes da história, eu inclino a cabeça como ele fazia, mesmo sem querer. 
Longas voltas pelo hospital, eu me inclino, mas nem tanto. 

Eu me lembro da raiva, do nojo, do receio e me pergunto se eu também causo isso. 
Alguém se irrita e grita, e eu me pergunto se estou fazendo a coisa certa, se isso é certo e se eu sou o que ele me fez ser. 
O monstro de Frankenstein, sem nome, só partes de remédios, uma colagem de antidepressivos e estabilizadores e antipsicóticos, um pouco disso e daquilo, ciência louca e errática, sem nexo, que apaga pessoas e memórias, anos, organiza pensamentos enquanto destrói poesia e a melancolia e cria uma coisa nova, funcional
perfeitamente funcional
socialmente aceitável

Fico me perguntando se sou, também, uma silenciadora de gritos, uma destruidora de silêncios e experiências individuais, se só eu e não Morfeu é quem tem o poder de adormecer,
se eu tiro o sofrimento ou crio novos. 

Não sei se tenho a resposta. 
Não sei se quero ter. 

45x13 Safe Spaces

 

Imagem: TingTing Huang


Queria conseguir escrever uma crônica, algumas. 

Seguir alguns padrões, andar sobre as linhas, escrever com as letras duras sobre as pautas, sem letras cursivas flutuantes no papel. 

Não consigo. 

Até tento, mas as letras saem voando, correndo, fugindo do papel como fogem da minha cabeça. 
Fogem em busca de um lugar seguro. 

Tolice. 
Não existem lugares seguros. 

Sentamos no banquinho de pedra, sob o sol quente do fim da manhã.
Ele ri. 
Uma risada frouxa, boba, de adolescente. 
Eu gosto. 

Teve um dia ruim, uns dias ruins. 
Fico pensando que as pessoas só chegam pra mim assim, em dias ruins. 
Todo dia é um dia ruim de alguém, pra mim. 

Ele me fala de música, tá animado pra me contar sobre um dia, uma noite, um beijo, uma vontade. Conta sobre prazeres secretos, a escola, um sonho. Quase como se eu,
como se eu fosse um lugar seguro. 
Mas não existe nenhum lugar seguro. 

Mesmo assim, eu deixo. Eu sou o lugar seguro, ou tenho o poder mágico de tornar lugares seguros, umas letras e palavras mágicas de amor e conforto, um colo místico, abro as asas de carne e esquento seus ossinhos arrepiados.
- Tudo bem, criança, vai ficar tudo bem -, minto. 


Eu minto, mas espero que fique. 
Espero que fiquemos. 

45x12 Into the rabbit hole

 

Imagem: TingTing Huang

Ela me conta um segredo e eu sinto que tenho um milhão de anos. Ela me conta que está esperando.

Eu envelheci à espera. E eu não posso mais esperar. Eu sei o que eu disse, sei que fizemos uma espécie de pacto antigo, com sangue e ossos, eu me lembro.

Eu me lembro da sua voz rouca sussurrando um feitiço, eu me lembro da tinta preta da caneta no papel que assinamos, eu me lembro do ruído que seus cabelos fizeram enquanto cresciam, cheios de promessas. 

Eu me lembro do pavor dos seus dedos. Cada cláusula, cada desejo, cada noite insone, cada sonho. Eu me lembro do seu cheiro de dia nublado. Eu me lembro do chão. Eu me lembro daquela noite. E das outras. Do tapete, da manhã. 

Eu me lembro, mas eu também não me lembro, quando foi isso? Quando foi que eu percebi que eu não podia mais? Quando foi que eu comecei a dizer pra mim mesma que você me destruiria, quando a verdade é: eu destruiria você. 

A verdade é, e eu só vou dizer isso mais essa vez, embora não seja mentira, e embora eu possa dizer em voz alta, mas - eu amo você. Tanto, mas tanto, que me machuca. Machuca minhas convicções, machuca quem eu também amo. Eu te amo tanto que me assusta, que te assusta, eu sei. Você não sabe como isso funciona, sabe? 

Eu te amo tanto que mataria nós dois. Você, de medo, de pavor. E eu, de solidão. 

Eu te amo tanto que criei na minha mente essa bolha, essa realidade alternativa em que isso poderia, talvez, funcionar. Eu te amo tanto que sei que não vai. 

Eu te amo tanto que vou te deixar nunca sentir isso, essa intensidade, esse terremoto, tempestade, eu nunca vou te deixar molhar os pés em mim, se afogar no oceano do que eu tô sentindo agora. 

Eu te amo tanto que vou te deixar dançar sozinho, ou acompanhado, e não vou interferir. Eu te amo tanto que vou brindar à sua felicidade. Eu te amo tanto e eu estou tão apavorada, paralisada de medo, de nunca sentir o gosto da sua boca e o seu coração batendo perto do meu peito, com tanto medo como se minha vida dependesse disso pra continuar. Mesmo assim, eu brindarei e desejarei felicidade, de verdade. 

Eu te amo tanto que estou te deixando ir - o que não quer dizer que vou deixar de te amar.
Eu te amo tanto que vou te deixar sozinho, na sua própria escuridão, pra achar seu próprio caminho. 

E mesmo que meus ossos estremeçam, mesmo que meu sangue cante seu nome e mesmo que eu encontre seu rosto em um estranho na floresta, mesmo assim, 
apesar das juras, e do pacto, e das profecias tecidas em tapeçarias e mesmo se seus pés sangrassem de tanto andar pelas encruzilhadas do submundo até o meu templo, e mesmo que você seguisse o fio de lã vermelho até o centro do labirinto, mesmo que você voasse sob o oceano, mesmo se você enfrentasse novamente os ciclopes, feiticeiras, tempestades, donzelas amaldiçoadas e pretendentes, nem mesmo assim

Não.
Nem mesmo assim.

Eu te amo tanto, que acabou. 

45x11 Terrible love

 

Imagem: TingTing Huang

Ele vem, devagar, flutua na minha direção.

Palavras correm pela minha mente. Pensamento acelerado, tão rápido, tão rápido, 

Palavras como
penumbra, cheiro, afago, cafuné, a textura do fecho, o cheiro do seu cabelo, do seu suor

É preciso mais do que

Do que é preciso mesmo? 

Você respira e eu sinto seu hálito, sua respiração, suas moléculas, eletricidade pura, estática, o choque das sinapses, meus pelos arrepiando, o conhecido repuxar no baixo ventre, excitação pura, 

E, ainda assim, nada. 
Uma corrente de ar gelado separando a sua boca da minha. 

Ah, sim. 
Um oceano no meio do caminho.

De medo, de culpa, de desejo:

de oportunidades perdidas. 

45x10 That feeling

 

Imagem: TingTing Huang

Eu não sei mais me expressar feito uma menina tocando piano no escuro da própria dor, eu não sei dizer o que tô sentindo. 

Uma velha, a mais velha do mundo, grasna, irritada e infeliz. 
É um mal estar. 

Mas não é. 

É uma sensação, um sentimento que não melhora, nem mesmo com a venlafaxina. 

É uma coisa aqui dentro, nem fome, nem sono, nem dor de viver. 
Ou talvez seja. 
Talvez seja eu, finalmente entendendo e querendo viver tudo isso. 

Tem uma coisa acontecendo comigo, uma coisa em mim, uma saudade que não sei nomear, intensa, profunda, marcante, que morde, belisca e pinica. 
Tá na ponta da língua o nome, eu quase posso tocar a palavra

É aquela sensação de que 
Sabe quando...? 

Tem uma coisa batendo, uma inquietude e o silêncio e a sua demora em dizer, e as HQs e o seu cheiro que eu já esqueci, e o medo de que um dia eu já não te tenha mais. 

Uma mistura disso e sono. 

Você sabe o que quero dizer, certo? 

Não? 

Então tá bom.
Amanhã, já esqueci. 

45x09 Estou querendo acabar com tudo

 

Imagem: TingTing Huang

Não. 

Tem uma pequena semente plantada num canto claro e cheio de sol, uma flor de pétalas bem finas, que floresce em climas mais frios, sob o sol gelado de uma cidade cheia de ladeiras. 

Uma frase curta, sem sentido, um sussurro em forma de sinapse

não existe amanhã

Acordo, ofegante. Sonhei, mas não me lembro dos detalhes, tento agarrar os elementos e eles se perdem, escorregam pelas beiradas da realidade imposta. 

Que dia é -
hoje. 

Hoje é hoje. 
E amanhã é hoje. Mês que vem é hoje. Semana que vem é hoje. 

Eu me deixo cair direto no abismo da rotina, na escuridão das horas, 
Que dia é
hoje? 

Hoje é hoje. 
E isso me faz feliz. Só preciso ficar hoje. Hoje é aqui. Amanhã é hoje, e isso me tranquiliza, de um jeito que você não consegue mais. 

Às vezes, eu ainda penso em acabar com tudo, 
mas não hoje. 
Hoje não, amanhã. 
E amanhã não existe, 
só hoje. 
Entende? 

Amanhã é hoje. 
Mas hoje não é amanhã. 
E é aí, meu amor,
que reside a magia dos dias e a razão pela qual eu não posso acabar com tudo, 
mesmo querendo,
hoje. 

Amanhã, quem sabe? 
Veremos. 

45x08 Walking with spiders


 Imagem: TingTing Huang

A memória é uma coisa engraçada, não? 

Uma aranha tece a teia translúcida, impenetrável, lá dentro do meu pavilhão auricular, tece a teia, aumenta um pedaço, tece, tece, por dentro do meu tímpano perfurado pelas lutas constantes, tece através das membranas, fibras finíssimas, quase invisíveis a olho nu, tece depressa as conexões pequenas, tece sobre as memórias, conectando fatos outrora completamente desconectados. 

Tece sensações, sentimentos, tece o gosto do pão doce e da coca-cola sobre a minha língua, o açúcar e as bolhas de gás, tece sob o rosto do meu pai, Ananse, tece sombra sobre a luz bonita da infância, tece a noite no deserto frio e seco, um cemitério de memórias enormes feito elefantes. 

Tece incessantemente, tece sobre os amados joelhos de Otto, tece tanto que eu mal me lembro do quão marrons são seus tênis converse, quão loiros são seus cabelos. 

Mal me lembro dos dentes enormes de Berenice, pois ela tece sobre eles um véu diáfano e poeirento, um véu de noiva, de uma Berenice boa e pura, sem maldade, letras em papéis e o ruído. 

Tece e eu quase posso ouvir suas patinhas de aranha, o roçar dos pelos, o claque claque, eu ouço por cima das memórias de uma adolescente. 
Misturo o zumbido do tráfego, Leslie Odom Jr e a voz de Chris Martin, tece por cima de Kate Nash e da primeira vez em que ouvi a voz de Florence, no cinema. 

Tece, tece, tece, tece por cima dos meus sentimentos mais íntimos, segredos mais obscuros, tece meu rosto no espelho, seu gosto, o gosto da carne, seu cheiro, alguns gestos que eu só recentemente aprendi, tece o sono, sonhos vívidos de amor e de guerra. 

Eu não quero esquecer. 
Eu não estou pronta pra esquecer, digo.

Mas ela não fala a minha língua e continua a tecer, tecer, tecer, tecer, 
insensível,
implacável. 

45x07 Which Witch

 

Imagem: TingTing Huang

Não me lembro do seu nome, da bruxa no quarto, à beira da morte, da bruxa na jaula, esperando a fogueira. 

Não me lembro do seu rosto. 

- Não foi um feitiço, foi um milagre, ela disse. 
Mas eu não vim julgar, eu vim pra aprender. 

Ela me conta sobre as noites, cicatrizes, dedos quebrados e gritos, e ele, o demônio, um homem, e o medo e o terror. 

Conta, delirante, febril, sobre o pavor, a coragem, uma semente, um desejo, um
feitiço. 

- Mas eu não sou bruxa, ela disse, eu não sou bruxa. 

Peço que continue, não temos muito tempo. 

Ela me conta que decidiu que nunca mais sentiria aquilo.
Decidiu? Desejou? 
Naquela noite, ele saiu em meio à chuva torrencial. 
E não voltou pela manhã. 
Foi encontrado em um buraco, tetraplégico. 

- Mas não fui eu. Foi Deus. Ele me ouviu, Ele me ouviu. 
- O que foi que Ele ouviu?, perguntei, o que você disse? 

Ela chorou, só chorou sem parar, sacudindo o corpo inteiro. 
- O que? - eu quase gritei

Podia ouvir o barulho dos passos no corredor, próximos. 
Ela moveu os lábios, sem que saísse som. 
- O que? Fale mais alto. O que você disse, naquela noite, o que você desejou? 

Aproximei meu rosto do seu, queria ouvir, precisava ouvir, mas, quando cheguei meus ouvidos perto o suficiente dos seus lábios, a porta se abriu, o tempo acabou e eu desapareci no ar, infelizmente, muito mais rápido do que o som do seu murmúrio, como se nunca tivesse existido, um borrão de tinta e pequenos pontos de poeira. 

- Não sou uma bruxa, foi o que ela disse - contei a Lilith, que me esperava, pacientemente, bebericando café. 
- Ela tem razão. Bruxas não existem.

E, como se apenas para contradizê-la, como se viajasse atrás de mim em uma velocidade infinitamente menor,
ouço o feitiço-desejo, baixinho, 
um segredo.

- Sim, você tem razão. 
Bruxas não existem. 

45x06 A wake

 

Imagem: TingTing Huang

Ela estava me contando a história de uma mulher que morreu de solidão. 

Eu não queria saber de dores nas costas potencialmente fatais, de remédios e doses, de psicopatologia, de sintomas depressivos e ansiosos, demência. 

Eu queria brindar. Eu queria histórias de aventuras e de uma mulher que não tinha medo de nada, nem mesmo de morrer só. 

Um dia, será que alguém reunir as pessoas pra contar histórias sobre como eu fui? Sobre minhas roupas, meu cheiro, meu jeito de falar. Um dia em que ela me contou sobre um homem que amava. 
Sobre um delírio romântico, 
um sonho adolescente, 
sobre um homem amado que me visitava nos sonhos.

(Você acha, você deseja com todo o seu coração, que ela o tenha encontrado? Que exista um depois disso tudo, um lugar único e especial onde tudo é possível)

Ela honra suas memórias, de um jeito tão especial e carinhoso, ela me conta, sem julgamento, que você estava à espera. 
E eu, através dela, te faço imortal, sem nome, sem rosto, uma história única e especial. 
Eu te dou amor e eu espero e brindo, ao amor que só existia na sua cabeça. 

Espero que ele, seu cabo, tenha vindo te receber na porta. Eu consigo imaginar a cena, seu rosto se iluminando à visão dele, seu uniforme, seu vestido, a iluminação do dia, eu dirijo a cena, como um filme antigo, tem luz e som,
tem cor, mas uma cor que nem existe por aqui. 

- Eu não lido bem com a morte, ela me diz. 

Mas a verdade é que ela lida melhor do que todos nós:
ela honra a vida. 

Brindamos. Com água, café, desvenlafaxina (até mais! até breve!) e esperamos, secretamente, que alguém, um dia, conte a nossa história assim, 
com afeto,
tristeza e
vontade.  

45x05 Awakenings

 

Imagem: TingTing Huang

Ele estava
cansado. Tinha sido um dia difícil. 

Bebeu água, comeu um pedaço de pão, quis morrer,
uma semente cinzenta brotando na terra fértil da mente, ínfima, absurda, erva-daninha no meio do jardim, ele se surpreendeu e 

regou-a. 

Só daquela vez, só pra ver. 

Sentiu prazer. 
E culpa. 

Pisoteou a ideia, afastou-se, tomou um banho longo e quente, trocou de roupa, quis morrer. 

Escreveu uma carta para a mãe. 
Desculpe. 
A verdade é que sentia muito. 
Demais até. 

Escovou os dentes e deitou-se. Fechou os olhos e imaginou, só por um milésimo de segundo ou talvez por umas 3 horas, como seria mais fácil se estivesse--
Se não estivesse. 
Se não fosse. 

Dormiu. 

E acordou, infelizmente, quero dizer, acordou. 
Sorriu, penteou os cabelos, 
deu risada, 
beijou a boca de uma mulher de cabelos cheirosos, seu pescoço, seus seios,
e quis morrer, mas só um pouco, talvez um pouco menos, era o que esperava. 

voltou pra casa com o gosto dela na boca, 
amou e foi amado, 
bebeu suco de uva, industrializado, de caixinha, 
sentiu vontade de comer pipoca, 
sentiu saudade de quando comia pipoca à tarde, depois da escola, 
e quis, desesperadamente, morrer. 

Nesse dia, sentiu medo. 
considerou contar a alguém, mas
era só uma ideia,
um pensamento intrusivo, lépido, frágil, que some depois de 
que some quando

ia passar logo, 
só um fase, 
altos e baixos, coisa e tal,
cortou as unhas, 
amarrou os cadarços, 
procurou as chaves,
quis morrer,

e achou natural, 
adequado, 
certo,

como 2 e 2 são 4. 

45x04 Unsteady

 

Imagem: TingTing Huang

Ele me pede pra andar na faixa branca que divide a pista, sem perder o equilíbrio. 

E eu consigo, eu sei que consigo. 

Nunca estive tão estável, eu nunca fui tão equilibrada. 

Tá tudo bem, agora eu sei quem eu sou, eu sei o que eu quero. 
Eu estou exatamente onde eu deveria estar. 

Ele me importuna, grita, sem fazer muito sentido, e cai na risada: quer ver se eu consigo andar em linha reta sem cair. 

Mas e se eu cair? 

Não tem problema, me tranquilizo.
É só uma linha no asfalto. 
Só uma linha. 

Se eu cair, talvez nem me machuque. 
Mas eu não vou cair. 
Por que cairia? 

Estou sóbria. Estou sã. 
Ele ri. 

E eu não reconheço essa risada.
E eu reconheço essa risada. 

- Anda, quero ver. Até o final da rua. 

Mas a rua é longa demais, a noite escura demais, minhas pernas tão curtas, meus cotovelos tão ossudos, ossos tão frágeis, tão frio aqui fora, e tão sem sentido estar aqui. 

- Por que estamos aqui? - pergunto a ele. 
Ele dá de ombros. 
- Você disse que conseguia, sem sombra de dúvida, andar na linha. Então, prove. 

- E se eu provar? O que eu ganho?

Ele não responde. Inclina a cabeça pro lado e me encara, pensativo. 

- O que você quer ganhar? O que você está tentando ganhar?


Eu não sei. 
Eu não faço a menor ideia, mesmo agora. 

Ainda assim, me coloco em posição. Um pé, depois o outro. 
Ando na linha, sou capaz de andar na linha, de chegar ao final. 

O que eu quero ganhar? 

Vou pensando no caminho. 
Eu te digo, quando chegar ao final. 

45x03 Ariel (Anna)

 

Imagem: TingTing Huang 


Plic-ploc-tzzt-tzzt-plic-ploc

Ariel é uma fogueira. 

Ela queima alto, brilha, ilumina a noite, milhões de cinzas caindo do céu. 

Ela alimenta a chama, drogas, paixão e dor. 
Ariel queima. 

A noite toda, incessantemente, sugando todo o ar ao redor, sufoca os homens e as mulheres, lambe e queima. 
E seu cérebro: plic-ploc-tzzt-tzzt-plic-ploc, grita sem fazer som. 

Ariel queima. 

Álcool, gasolina, tecido, madeira seca, carvão. 
Queima, queima feito um pedaço de sol. 

O cérebro tzzt tzzt
E ela, nada. 

Queima e brilha, ela é incrível, a maior, a melhor, maravilhosa e mágica. 

Ariel queima. 
Queima tudo e todos ao seu redor, dança até o amanhecer, de novo e de novo, sozinha ou acompanhada, sem nunca parar de queimar. 

Tzzt tzzt

Crepita,
queima. 

mas um dia chove.
E o fogo se apaga como se nunca tivesse existido. 


Mas existiu. 
Extingue-se, deixando pra trás tecido queimado, pele queimada, madeira queimada
e o cérebro?


tzzt-tzzt-tzzt
tzzt
tzzt


ztzz

Early Cuts: Horcrux

Imagem: TingTing Huang


(Esse texto faz um ano no dia 20 de julho. Quanta coisa mudou, quanta coisa aconteceu... Ainda bem)


Caro Otto, 

Sei que estive sumida e peço desculpas. Eventualmente, falaremos sobre isso. 

Mas hoje, eu precisava falar com alguém. Eu precisava que alguém entendesse, mas ninguém entende. Então, talvez, você entenda, onde quer que esteja. 

Eu perdi um paciente. Outro paciente. E estou tão cansada de perder pessoas, Otto. Ultimamente, parece que só tenho perdido pessoas. 

E cada uma delas, mesmo quando desconheço seu nome ou quando me falta a oportunidade de falar com sua família, cada uma delas parece levar consigo um pedaço da minha alma. 

E eu não sei quantos restam, Otto. 

Eu não sei se posso mais perder pedaços. 

Eu quero ser o melhor que puder pra salvar todo mundo, mas não consigo. Eu não consigo salvar a mim mesma. 

Cada vez que eu volto pra casa chorando por alguém que não é mais, alguém que poderia ser seu pai, seu avô.
Sua mãe.
Minha mãe.
Você. 

Eu sinto como se morresse um pouco. Como se o mundo tivesse ficado diferente, mais leve e mais pesado. O ar mais denso. As pessoas em suas rotinas diárias, como elas podem não sentir? 

Por um instante, uma luz se apagou como se apaga com um desiluminador. E as pupilas dilatam, escuras feito um abismo no fundo do oceano, perpetuamente silencioso. 


De repente, não se é mais. 


E eu? Quem sou eu nisso tudo? Um conduíte da morte, um anjo?
Eu tento, e eu preciso tentar, mas eu não quero mais. 

E diariamente alguém a me colocar o laringo na mão e a dizer que ele precisa, ele vai morrer, ele vai morrer se você não fizer nada, vai morrer se você fizer alguma coisa, ele vive e morre aqui e agora. Eu tento decidir e fazer o certo, eu tento dizer que não, mas ainda assim canto a hora do óbito. 

E que hora é essa? 

Chamo o pulso e ele não vem, o ar e ele não vem, chamo a alma, mas eu não sei se isso existe. Se existe mais. Se eu devo mesmo me desculpar, aos prantos, na volta pra casa, como se alguém pudesse me ouvir e me perdoar. Ou me punir. Me punir por tentar. 

Eu não quero mais errar, Otto. 

Eu não suporto mais errar. 

Mas eu não sei como acertar. 


Então, talvez, eu deva parar de tentar. 

O que você acha? 


Espero que esteja bem. Use máscaras. Fique em casa. Fique vivo. 


Com amor, 

B. 

Early Cuts: Vamos embora

 

Imagem: TingTing Huang


Caro Otto,

Vamos embora. Estarei te esperando, às 7h30 da manhã, sob a garoa fina.

O ônibus das 7h20 quase nunca se atrasa. E eu já estarei lá quando ele passar. 

Regata, saia
Façamos uma mala pequena, levemos pouco.
Escova de dentes, não me esqueço. Papel e canetas. E pijamas.
Posso deixar as mágoas pra trás? E as meias sujas, paixões antigas.
Quero levar uma goiaba pra comer no caminho. 

Vamos embora. Tenho comigo um tanto de dinheiro e uma blusa de frio antiga, furada. 

Otto, vamos embora. Palavras sinceras de quem já não se reconhece no que faz. Você dorme, eu dirijo.
Você dirige, eu durmo.
No intervalo dos desencontros, conversamos.
Você me conta sobre sua vida, uma mulher. Sinto ciúmes, mas sinto carinho, alívio. Tá tudo bem.
Sonho com a comida de beira de estrada, em algum ponto você para pra que eu vomite. 

Vamos embora, e já é noite na estrada, uma estrela única no céu pra fazer pedidos que nunca são atendidos até ser tarde demais.
Eu até já pedi por você.

"Você já pediu por mim?", eu pergunto, e você sorri, enquanto me leva pra casa, pra ele, o calor do homem que eu amo. 

Vamos embora. 

Vamos embora.

Vamos embora. 

Vamos embora. 

Meu corpo pede. Meu coração pede.


Tô esperando o quê? 

Talvez você, Otto, possa me responder. 


Vamos embora. 

Estarei esperando. 


Com amor, 

B.

45x02 Katie Holmes

 

Imagem: TingTing Huang

"Pollyanna: Well, I suppose I could be glad because...
Nancy: Yes, go ahead, darling.
Pollyanna: No! It was a silly game! I hate it! I'll never want to play it again! Leave me alone!"

Você me diz que não jogo o seu jogo. Diz pra eu jogar.
Mas

Eu jogo o seu jogo pra acordar de manhã. 
Pra sair pro trabalho. 
Eu jogo o seu jogo pra conseguir andar depois de um dia de trabalho.
Jogo o seu jogo pra dirigir de volta pra casa sem dormir ao volante.
Jogo o seu jogo quando alguém morre sem que eu possa fazer nada, quando alguém morre sob as minhas mãos. 
Jogo o seu jogo quando minha irmã sai, quando eu saio, quando eu saio pra te encontrar.
Jogo o seu jogo quando falo com alguém. 
Jogo o seu jogo pra sair, e pra voltar. 
Jogo o seu jogo pra não enlouquecer. 
Mas não é o bastante,

o que você quer de mim? 

Você começa, peças brancas, movimentos fluidos, certeiros, derruba minhas peças, eu acho, porque eu não sei jogar, eu não aprendi a jogar. E você sempre soube jogar. Está em você, mas não em mim. 

Quero aprender, mas não é algo que se ensina. 
Então, como?

Minhas peças continuam caindo, sem que eu derrube nenhuma das suas, sem que você tenha que derrubar nenhuma das minhas.
"Eu não faço nada, é tudo porque você não está jogando direito", você diz, todo mundo diz. Não é você, sou eu quem derrubo minhas próprias peças, com meu jogo desajeitado. 

Eu quero parar tudo, eu quero aprender a jogar, eu quero ser melhor, quero fazer direito, de novo. Eu juro, vou fazer melhor, vou fazer direito, de novo. 

Não tem intervalo. 
Não tem trégua. 

Aprende-se enquanto se joga. 
Ou perde-se. 

É simples. 
As regras são simples, todo mundo consegue, é só querer, 

o que tem de errado com você?


- Não se preocupe. Vai dar tudo certo. No tempo certo. É só acreditar. Seja otimista. Vai ficar tudo bem. Já deu tudo certo. Pensamento positivo. Certo? 







- Certo. 

45x01 Por um triz

 

Imagem: TingTing Huang

Quase 2 anos, nem sei mais se sei como fazer isso. Mesmo assim, vou fazendo. 

E, admito, parece mesmo como andar de bicicleta. Meus dedos reconhecem as teclas, os comandos. Os sons, a sensação de estar finalmente em casa de novo. 

Olá, querido leitor. Estou aqui. 

Estou viva. 

Você está?


Tem tanto que eu quero dizer. Aconteceu tanta coisa. Eu quero explicar a razão de não ter voltado. Mas eu não tenho razão.
Por que agora? Por que hoje? 


É que hoje acordei de propósito.
E fazia muito, muito tempo, que só acordava por puro instinto. 

Hoje eu queria começar de novo. Hoje eu acreditei que realmente conseguiria se quisesse. Eu queria um ano novo, com a B. antiga, a que eu amo, respeito. Hoje eu quis encher a minha parede de cores e lembretes. 

Hoje eu queria escrever sobre Otto e Chuck. Hoje eu queria beber água e comer vegetais. Hoje eu queria fazer yoga. Hoje eu queria querer estar aqui pro ano que vem. Hoje eu queria ser quem eu não sou ainda. 

Hoje eu queria esquecer que tudo na vida é quase. Quase lá, mais um pouco. Tudo é esforço, trabalho duro. Tudo é por um triz. Tudo é na hora certa, quando você estiver pronta. Se Deus quiser. Um dia desses, quando se menos espera. 

Hoje eu queria esquecer que eu quero.
Agora. 
Pra ontem. 

Hoje eu queria fácil. Descomplicado. 
Queria sorte, do tipo que a Lindsay Lohan tinha em "Just my luck", daquele tipo de fazer parar de chover.  Usar uma calça branca que nunca se suja. 

Hoje eu queria ser a primeira opção. Ter a primeira opção. 
Hoje eu queria não aceitar menos que o melhor. 

Hoje eu queria saber o que fazer. 


Mas eu não sei. 

Por enquanto, tudo é quase. 
Tudo é por um triz. 

Por enquanto, só quero, quem sabe, 
acordar de propósito amanhã.