47x07 The you I love in the dark

 

Imagem: TingTing Huang

Eu quero me explicar. 

Quero contar sobre essa sensação que você causa em mim. 

Eu me senti a 7 léguas de você, no mesmo quarto. Olho seu rosto e fico me perguntando, se você é bonito, se você é feliz, se eu te amo. 

Perguntas que vem em grupos, milhões de pontos de interrogação que surgem nos meus balões de pensamento quando você entra em uma sala. 

Conversamos. 

E eu quero saber mais sobre você. Eu quero saber mais sobre mim, através de você. 
Eu quero saber sobre nós. 
Eu quero saber se existe nós. 

Num quadro branco, faço conexões, eu estudo teorias, todas as possibilidades, utilizo os axiomas para entender, talvez. 
Concluo que não. Não existe tal coisa chamada "nós".
Existe aqui, existe agora. 

Existe o cheiro que você abandona quando caminha de um lugar pro outro. E essa coisa no fim da sua risada. 
O jeito como você usa os seus pontos de interrogação. 
E esse tom de cera de vela. 
A tensão existente no caminho dos seus olhos. 

O tácito acordo, essa sensação de arder em chamas, a ferida que abre quando isso tudo reaparece, tudo o que acontece quando você leva tudo embora - e deixa pistas de que já esteve aqui. 

Explique isso pra mim, porque eu não consigo entender sozinha, eu preciso das suas peças nesse quebra cabeça. 
Eu tô tentando entender e, ao mesmo tempo, eu não quero entender. 
Eu quero aceitar. 

Eu quero ser honesta, comigo e com o mundo. Mas nem tanto. 

Eu perguntei a ele se isso duraria pra sempre. 
Fiquei pensando sobre um dia que passamos juntos, milhões de anos atrás, em outra vida. 
Eu podia ver o sol nascendo atrás da sua cabeça e 
Eu amo você. 
De muitas, muitas maneiras. 
Mas não dessa. 

***

Mais uma vez, feito uma tradição macabra, eu acendo as velas no seu altar e deixo que elas queimem o sacrifício que eu insisto em deixar, como se fosse ainda o meu deus. 
Enquanto espero, percebo que você poderia, se quisesse, responder às minhas preces. 

Já não há ninguém, mais nenhum devoto. Ninguém sacrifica carneiros, homens, ninguém segura as suas mãos ao atravessar a rua. 

E, ainda assim, você não responde. 
Você poderia, se quisesse, mas não responde. 

Você me deixa sozinha, as velas queimando, uma a uma, até escurecer, até que eu tente, desesperadamente, te amar no escuro.
Espero uma resposta, uma epifania, um toque, mas você não responde nada. 

Logo, a resposta é não. 

Early Cuts: White noise

 

Imagem: TingTing Huang

1 - Negação

As vozes ficam cada dia mais baixas, mais distantes. As minhas, as dela. 
Como se eu ouvisse uma voz que ouve uma voz. 

Penso nisso e não acho nada, sinto uma angústia ruim, peito roído, quebrado ao meio, e me afogo na rotina torpe de acordar e dormir, falar e ouvir, e não pensar. 

A mulher que vive nos meus ouvidos me fala, ou fala para si, e eu já não a reconheço. 

2 - Raiva

Tolices. 

Eu brigo. Fico com raiva da luz, do cheiro, da cor amarela que aparece nos seus olhos. 

47x06 Veil

 

Imagem: TingTing Huang

Chego em casa e lavo as minhas mãos, mas o seu sangue não sai. Mancha toda a pele, feito caneta permanente. 

Não sai nunca e eu esfrego as mãos até ficarem em carne viva, mas o seu sangue fica. 

***

Abro a sua cabeça com mil instrumentos inadequados, abridores de latas e facas de mesa, seu crânio duro entortando meus garfos.
Cacos de vidro, tesouras sem ponta e bigornas. 

Pregos e lixas de unhas pontudas, abro buracos e espio aqui e ali, sem fórmula, sem objetivos, sujo tudo com seu sangue, com meu sangue, até não saber mais qual sangue saiu de quem, quem sangrou mais, quem vendeu, se tem vencedores nessa história de brincar de sério. 

Faço uma sujeira, uma bagunça que não sei limpar, que me apavora ter que limpar sozinha, e eu quero parar e limpar. 
Eu juro que quero. 
Mas, como tudo na minha vida, deixo pra depois... 

E pego uma colher de sobremesa, uma chave, um grampo.
Debruço-me sobre o seu corpo - e me causa tremenda estranheza pensar nessa cena vista de fora - e me ponho a cavar, raspar e furar. 
Incessantemente. 
E eu não sei o porquê. 

Eu não sei o que eu quero encontrar, o que eu vou encontrar. 
Eu não sei o que fazer se achar. 

Por um momento, eu paro. 
Eu pauso o mundo inteiro e me sinto sozinha nele. 
Sozinha com você, o que é mil vezes pior. 

Por que? 

A ideia me sufoca e, no entanto, tornaria tudo tão mais fácil. 
Mas a coisa é:
essa não é uma história de amor. 

É uma história de criação, estamos criando algo, não estamos?, eu te pergunto. 
Mas não somos Adão e Eva, como você queria que fôssemos. 
Somos Pandora e Prometeu, somos Victor Frankenstein e seu monstro e eu tenho uma certeza quase que premonitória de que o que quer que criemos será tomado de nós. 

E seremos punidos pelos deuses modernos. 
É só uma questão de tempo.  

47x05 Beige

 

Imagem: TingTing Huang

Sou um projeto inacabado, geneticamento falando. 

Em termos de receptores, neurofisiologia, densidades e quantidades, pequenas moléculas flutuantes. 

Cor de burro quando foge, perpetuamente buscando um banco no não-lugar entre lugares, e ficando de pé. 

Às vezes, no centro do mundo, às vezes no fundo do poço. Raramente (ou nunca) no topo. 

Tô achando que tem algo de errado que não está certo. 
E só pode ser em mim. 

Projeto inacabado, faltou pouco, uma pitada quase, ou 2 ou

Bom, não deu. 
Mesmo assim, agradeço. 

Obrigada a todos, a tudo, por tudo. ~

Punição ainda maior do que não pertencer é ter que ser grata por isso e, portanto, agradeço. 
sou muito grata. 
gratidão. 

Tenho que estar perpetuamente, persistentemente, no espírito de quem é grato. 

E eu não quero mais ser grata. 

47x04 A match made in hell (or Moonrise Kingdom)

 

Imagem: TingTing Huang

Tudo o que te atravessa importa. 
Tudo o que eu ponho sob os holofotes, no centro da dor do mundo, importa. 

Um céu cor de rosa enjoativo, cabana de madeira, binóculos. 

Fujo de casa, pro meio do nada, cidade sem praia, em busca de feras e aventuras, bestas e rãs. 
E te encontro, no meio do caminho pra não-sei-aonde. 

Apertamos as mãos, pactos com cuspe, e até andamos de mãos dadas. 
Pegamos girinos em potes e até lutamos contra inimigos (imaginários ou não), demos nomes às estrelas, capturamos insetos e conchas,  pregamos peças e fizemos pactos de silêncio e de riso e de sei lá o quê. 

Mas sei lá o que houve, puberdade, ou talvez sua medicação tenha feito efeito. Outro dia, dia desses, a gente fazia pactos cuspindo nas mãos, no outro dia você tinha nojo de saliva, no outro me dizia pra não ser como sempre fui. 

Jogou de volta na água os girinos, passou a se interessar por borboletas e outras narrativas menos fantasiosas, e a se irritar com o som da minha voz infantil.
Eu ainda te contava os meus sonhos, mas você dormia antes que eu terminasse as histórias. 

Um dia, eu acordei no meio da noite pra revezar quem ficaria de guarda no nosso forte de madeira. 
Chamei o seu nome no escuro, mas você nunca veio. 

Não chorei. 
Não foi a primeira vez que aconteceu. 

No dia seguinte, o céu ainda tinha aquele tom cor de rosa-enjoativo, os girinos estavam na água, o forte ainda precisava de vigia. 
Havia muito o que fazer, pouco tempo para lamentar. 

Em retrospecto, agora já adulta, penso que deveria ter lamentado. 
Que, talvez, deva lamentar agora. 

Mas hoje não. 
Não tenho tempo. 

Early Cuts: The killing of a sacred deer

 

Imagem: TingTing Huang

Nos confins do labirinto do inconsciente, você se senta - nunca nu, mas nunca vestido -, num tapete sem cor, sala sem cheiro, sua boca sem gosto, 

vulto, sombra, emoção malfeita do deus do inconsciente, você se senta no trono do Id, soturno, divino, sagrado, silencioso, banal. 

Hoje, como em todos os dias, vim te matar, vim te sacrificar nos altares do ego, me banhar no seu sangue, comer a sua carne e me livrar da sua memória rarefeita, dessa sombra imaculada - ou maculada pela falta da ignorância infantil, não sei. 

Você, blasé, deita-se sobre a pira e espera, espera, espera. 

Eu, sem forças, nem consigo erguer o punhal, que pesa toneladas. 
Cada vez mais pesado, feito as minhas pernas após a batalha, 

47x03 Lugar

 

Imagem: TingTing Huang

Eu sou uma mulher negra. 

Negra, de pele clara. 
Calma lá, não se exalte. 

Negra. 

Como eu sei? 
Existo, às vezes, em um não-lugar, não posso me sentar no banco do branco e, às vezes, nem no banco do preto (isso quando o preto pode sentar). 

Acesso lugares que ninguém acessa, não lugares. 

Nunca sou branca, mas, às vezes, dizem que não sou preta. 
Eu sou o quê? 

Minha vivência é só minha.
Eu sei quem eu sou, porque a minha história é. 
Existe. 

Meus pais, minha família, as tentativas infinitas e doloridas de embranquecimento de peles e cabelos e narizes e genes e descendentes, o dito pelo não dito. 

Como eu posso explicar e comprovar quem eu vejo no espelho, quem fala pela minha boca e dorme e acorda no meu colchão? 

Invado lugares e piso em cacos e sento em bancos e sou continuamente relegada a um não lugar. 
Que é um lugar.
Solitário e doído, à sua maneira.

Entre os bancos, puxo uma banqueta e sento. 
Tem mais gente que se sente assim. 
Tem que ter. 
Tem que ter. 

Espero. 

47x02 Afraid to be the greatest

 

Imagem: TingTing Huang

Não consigo.
Duas palavras que pesam uma tonelada. 

Não consigo ser quem eu sou. 
Não sei ser quem eu sou. 

Começa insidioso, um sussurro, uma ideia pequena e infeliz. 

Cresce, morde meus sonhos, faz com que eu me esconda em você. 

Sensação terrível, que se alimenta das horas do dia e da minha imagem no espelho. 
Desconstroi e não me deixa juntar as peças. 

Pequena e infeliz, tudo me assusta. 
Finjo. 
Começo a fingir, pra ver se acredito. 

A cabeça explode com a pressão do grito e do choro contidos que eu não sei de onde vem, eu não sei nomear. 
Eu tenho medo de reconhecer. 

Sinto como se fosse o desenho de uma silhueta. Oca. Despropositada. 
Um desenho cinza de uma pessoa cinza. 

Já houve eras em que senti que tinha mil anos. 
Essa sensação é diferente.
Quase sinto como se nem tivesse nascido ainda. 

Crua e nua, flutuando em líquido, ou gás. 
Ou presa na solidez dos dias, que se apresenta como um calor seco, entra pelas narinas e circula, por dentro e por fora, como se eu fosse nada. 
Como se eu fosse tudo. 

Sinto até um certo conforto, por breves segundos. Depois, só pavor.
Nem medo, pavor. 
Como uma criança olhando debaixo da cama e descobrindo o bicho-papão, o Coríntio. 
Como se eu não estivesse segura nunca. 
Como se eu não pudesse dormir. 


Como se ele estivesse não apenas debaixo da cama, mas em todos os lugares. Debaixo da mesa, armários. 
Nos rostos. 
Como se todos os dias eu acordasse envolvida no abraço apertado do meu próprio pesadelo psíquico, uma criatura mágica, que só desaparece se eu lhe der nome. 

E que, 
se eu errar,

47x01 Basic instincts

 

Imagem: TingTing Huang

Por que não? 
E se? 


Ele se senta na cadeira oposta e me pergunta o significado do universo.
Quem somos? 
Pra onde vamos? 

Seguimos, e é tudo. 

Fomos feitos para ser felizes? 

Bombardeia meus sonhos com perguntas terríveis e cortinas escuras, quando eu sigo desesperadamente tentando fechar minhas persianas. 

O que você quer? Ou, mais importante ainda, por que você quer? 

Deliro, febril, ou talvez não. 

Feito uma mariposa atraída pela chama de uma vela, acredito. 

Ergo altares e monumentos, uma estátua de um homem enorme oculto nas sombras, a destruição personificada, Perpétuo desaparecido. 

O homem quer a morte. 
Ele diz que não, que quer estar vivo novamente. 

Mesmo assim, diante dos meus olhos vítreos, mergulha a cabeça na água gelada, sem parar, engasga, afoga-se. 

Eu quero que pare, mas, talvez, eu não queira. 

Puxo meu próprio balde de água, cheio até o topo, 
água lisa, espelho de narciso. 
Eu considero. 
Uma, duas, dez vezes. 
Eu considero. 

Ele urge que eu tente também, vamos, tente. 

Por que?, eu questiono. 
Por que você faz isso, se dói? 

- É quem eu sou, ele diz, eu não consigo controlar. 

E eu consigo.
Mas eu não quero. 

Encaro o balde, o espelho, toco a superfície gelada. E sinto medo. 
Intenso, paralisante. 
Pânico, dispneia, taquicardia. 

Nem reconheço meu próprio reflexo, despersonalizo, desrealizo. 
Sufoco. 

É quem eu sou, 

é quem eu sou. 

46x22 What it was that made you weak ou UkuLulu (Season Finale)

 

Imagem: TingTing Huang

Acordei no meio da noite, boca seca.
Enchi um copo com água quente da torneira, gosto doce, rascante, água que deixa com sede.
Como pode isso? Satisfazer um desejo gerar mais vontade?
Faço silêncio. Tento ouvir a sua respiração através da parede. Nada. 

Nem um ruído sequer. 

Fico parada no meio da noite, pensando, esperando por aquele momento prometido pelos livros de Jane Austen. 

O momento em que você vem. 

O id todo pulsa, terremoto inconsciente, tonteio.
Ê, homem.
Sacudo a cabeça com força, como se espantasse o fantasma das coisas não vividas.
Tô tranquila, vou ficar bem.
Você nem existe.
O você que eu quero só existe na minha imaginação, repito, feito mantra. 

Você é só você, não tem nada do homem que eu, às vezes, no meio da noite, e até algumas vezes durante o dia, manhã e tarde---
Bom, isso não vem ao caso. 

Intrusivo, egodis, digo, sintônico, penso no cheiro do seu pescoço e fico meio taquicárdica, só um pouquinho.
Ou, talvez, eu tenha uma arritmia, uma disritmia.
Era só o que me faltava.

Ego ferido, coração ferido.
Puro suco do clichê.
Bebo mais água, sinto mais sede.
Mas que droga. 

Fico de pé olhando os prédios pela janela da cozinha escura, esquecendo que tenho medo do escuro, que acordo cedo amanhã, que não posso querer você.
Quase esqueço de tudo, dissocio, hipnotizada pelas janelas minúsculas e escuras onde mora gente que sabe ser amada.
Quase lá, sou despertada bruscamente do meu transe hipnótico pelo ruído do seu interruptor, seus passos, sua porta que se abre. 

Esse é o momento.
O momento em que você vem. 

Meu coração bate tão rápido que tô com medo de que você possa ouvir daí, que a sua mãe escute lá da casa dela, de que meus antepassados escutem.
Acho até que acabei de acordar um homem na Austrália.
Imagino brevemente o susto dele, "What the fuck", ele tá ouvindo trovejar, mas o céu tá limpo. 

Enfim, você chega.
Não diz nada, pega um copo, enche de água da torneira.
Bebe um copo, depois outro.
E outro.
E outro.
E outro. 

Você me olha, em silêncio, o silêncio mais angustiante já concebido. Uma mistura delicada e única daquele choro silencioso, do som que fica depois que alguém vai embora, e do silêncio de espaços em que a gente não deveria estar, espaços em que a gente não cabe. 

Esse é o momento.
É o momento em que você vem. 

Por favor, não venha. 

Early Cuts: Quinn

 

Imagem: TingTing Huang

Eu sou um oceano
Você sabe disso e, mesmo assim, tenta molhar os pés.

Não dá.

Eu sou uma sereia, um coral, a lua. Eu sou a maré, a areia sob os seus pés.
tudo e nada.
O ar e o vazio entre os planetas.

Eu vou pra casa e você, fica. E você, 

Fica. 

46x21 O amor que não posso dar

 

Imagem: TingTing Huang

Caro Otto, 

como você está? Por onde anda? 

Pergunto por educação, não sei se ainda me importo. Às vezes, acho que sim. Só às vezes.
Tem algo dentro de mim, e me sufoca. Abro todas as janelas da casa, me ponho nua, ligo o ventilador, preciso de ar, preciso respirar.

Preciso de silêncio e de música.
De afeto e de distância.
Preciso de um incêndio e de chuva torrencial.
De você e do não-você. 

Tem algo dentro de mim, que precisa sair, que eu quero que saia. Eu preciso que saia.
Mas eu não sei colocar em palavras, Otto.
eu não sei falar.
Sinto como se estivesse doente, meu corpo todo me diz que estou doente.
Talvez eu esteja.
Puxo o ar, tem ar aqui, eu tento convencer meus pulmões, tem ar aqui. E, mesmo assim, parece que me afogo. 

Eu quero tudo, Otto. Eu não quero nada.
Se eu puder, 

Finjo que você está aqui. Uma cadeira vazia, na frente do sofá.
Olho nos seus olhos de fantasma.
- Eu quero muito, mas não sei como.
E você não responde, você nunca responde.

Otto, o que é amor?
É o que ensinaram pra gente?
Por que eu insisto que seu amor é me dar as respostas pras perguntas que eu não sei formular?
E quem foi que te disse que amar é ficar em silêncio?
E o que era pra ser?
Você acha que a gente já amou alguém?
E como, como eu seria capaz de aceitar o amor que não consigo retribuir?

Tô pensando em Drummond, tô pensando nos meus pais e em quantas vezes o amor bateu à porta e eu fingi que não estava em casa.
E em quantas vezes ainda vou fazer isso.
E que o mundo é um lugar hostil e cheio de adultos feridos, como nós. 

Tô pensando se amor existe e que controlar nossos impulsos é o mais sensato.
E penso na textura do seu cabelo recém raspado e no cheiro de xampu.
Você acha que eu te amo?
Como? Como é que se ama uma coisa que não existe mais, um fantasma, uma alucinação, um delírio.
E, se eu te amo, por quê?
Tanta gente no mundo que merece meu amor e que pede os meus sentimentos, e eu insisto em guardar todos em você.
Porque você, Otto, não pode retribuir. 

Lembra-se daquele conto japonês sobre a garota que recebeu um bilhete: "amar ou ser amada"?

Todos esses anos, Otto.
E eu ainda não estou pronta para ser amada.
Eu nunca vou estar, desconfio.
E me dá medo, um pouco. 

Eu amo esse homem, como você sabe. E ele me ama. Mas eu não sei ser amada.
É complicado, mas funciona, de algum modo.
Não sei onde vai dar. Mas espero. Isso eu sei fazer com maestria. 

Mas. 

O que acontece quando uma pessoa que não sabe ser amada tem filhos?
Como se ensina algo que não se aprendeu? 

Tem algo, Otto, algo dentro de mim.
Você poderia, só desta vez, me responder o que é? Pra que serve? Só dessa vez, será que você poderia me dizer

Eu juro, só dessa vez, 

quem sou eu? 

46x20 Contrato não-verbal

 

Imagem: TingTing Huang

Sorrio, através da mesa. 

"Eu te amo", penso.
Mas não digo, não digo nunca.
Comento sobre a comida, o tempo, um filme. 

Você assina com sangue o contrato não verbal de jamais dizer que sim, e diz que está pensando em viajar.
Eu comento sobre uma nova coleção de agasalhos, conchas diminutas de praia, uma piada antiga, e me dá uma vontade imensa de pegar na tua mão. 

Você quase me toca, por pouco, arrepia, mas disfarça, apontando para o cartão que deixei cair.
Tomo um gole da sua coca-cola e quase sinto o gosto do seu beijo. Engasgo.
Você ri da minha confusão, me dá um tapinha e seu coração dispara, feito cavalo de corrida. 

Te abraço na saída e te solto um segundo antes, mesmo querendo ficar por horas escondida no seu peito.
Você me dá tchau e entra no carro, todas as músicas são nossas, a noite é nossa, o cheiro dos meus cabelos invade as suas narinas e você abre as janelas pra não sufocar.

Eu deito na cama e não durmo, eu tremo.
Em outro universo, outro travesseiro, você pega o celular 100 vezes pra me mandar mensagem, pra quebrar o contrato, pra dizer finalmente que

"Chegou bem??", brilha, na tela, a mensagem que eu, insone, enviei.
"Sim :)"
Nas entrelinhas, sim quer dizer tudo o que só pode ser dito no escuro? 

Boa noite, eu digito, pra não dizer que preciso do seu corpo aqui, agora, pega sua roupa, sua mala, sua escova de dentes, sua ---

"Boa noite"

Encaramos o celular, esperando mais, mais o quê?
Só é preciso uma fagulha, um sinal, uma mensagem mística, uma mensagem por engano, me mostra que não tô ficando doido, me mostra que não vou me magoar, me mostra que não vou estragar tudo.
É só uma questão de propulsão
Talvez seja essa a hora, talvez seja hoje, talvez

Não era.

Dormimos, mais uma vez, deixando o contrato intacto. 

46x19 Male Fantasy

 

Imagem: TingTing Huang 

"Queria beijar sua boca"
4 palavras no papel, letra miúda, singela. 

Ele sorri com os olhos, como se pudesse ler a minha mente.
E eu quase tenho medo de que possa. 

Eu sou uma mulher.
Cor de café-com-leite, burro quando foge.
Nem de longe a primeira a ser chamada pra dançar. 

Ninguém me olha duas vezes ao passar por mim, nas ruas ou corredores.
Ninguém me busca nas fotos ou me escreve poesias.
Não olham meus seios e nem sussurram meu nome nos vestiários.
Não sonham sonhos eróticos, cheios de cores e sensações.
Ninguém quer o que eu vejo no espelho. 

Por um instante, você quase consegue me fazer pensar nisso. Quase consegue me fazer pensar que --

O que você quer?
O que você vê, com esses seus olhos fundos de contar degraus?
Vejo, refletido nos seus olhos, a imagem de um lago pra você se debruçar num dia quente.
Feito uma miragem. 

Dentro do lago, existe um oceano.
E você só quer o lago. 

Todo mundo só quer o lago. 

46x18 Golden

 

Imagem: TingTing Huang

Oi.

Queria começar direito, formal.
Não consigo, não consigo levar isso a sério.
Escrevo pra dizer que te amo.
É, escrevo porque precisava botar isso no papel. E nunca te entregar, e nunca te dizer. 

Que merda. 

Eu amo você. 

Tenho tantas razões, tantas coisas pra dizer. 

Você é tão--
Intensa. Veloz. Brilhante. Amo a sua pele, o jeito como a sua voz muda ao longo do dia.
Eu amo quando você ri.
Eu amo quando você fica pensativa.
Eu amo tudo sobre você, e isso assusta pra porra.
Você é doida. De um jeito mágico, místico, misterioso, sua pele queimada brilhando sob a luz do céu da manhã, e eu só queria que você soubesse--
Eu não quero ficar só. Eu quero ficar com você. 

Quero ficar com você. 

Penso em você o tempo todo. Na sua boca, no seu corpo nu
Perdoe se pareço vulgar, mas é que eu sou vulgar. Penso no seu corpo nu, penso em fazer sexo com você em todos os lugares que conheço e desconheço.
Penso no gosto que a sua boca vai ter, agridoce, na sua saliva quente.
Às vezes, penso nisso enquanto estamos juntos. Não consigo evitar.
Você fala, e você ri e você toca de leve o meu ombro.
Sinto arrepios.
Às vezes, à noite, penso em você.
Quero ficar com você. 

Quero poder olhar pra você, quero poder te tocar sem medo.
Quero poder te dizer todas essas coisas em voz alta. Quero não precisar desviar meus olhos dos seus, por medo de que você possa ler minha mente.
Quero parar de falar sobre assuntos amenos quando estamos juntos.
Quero poder acariciar seus cabelos, te puxar na minha direção.
Eu quero poder te dizer o quão incrível você é.
E tudo bem, se você não sentir o mesmo--

Não.

Não.
Eu quero que você sinta o mesmo. Eu realmente, realmente, quero que você sinta o mesmo.
Mas sim, eu sei. Eu me conheço.
Você é diferente. Tão brilhante e aberta e eu sou tão--
não você.
Às vezes, acho que te amo porque você é tudo o que eu não sou.
E eu sou tudo o que você não é.
Como daria certo?
Acho que essa sombra que me acompanha, que consome tudo, que suga tudo, acabaria por te devorar.
E eu não quero que ela te devore. 

Então, me resigno a sentar do seu lado no horário de almoço, te ouvir falar sobre essa outra pessoa por quem você talvez esteja apaixonada.
Você reluz e eu dou risada. Por dentro, eu sufoco.
Eu o odeio, sem conhecê-lo.
Odeio que ele possa te tocar, odeio que ele possa te consolar, odeio que ele possa tocar seus seios, odeio que ele tenha te visto nua na penumbra do seu quarto.
Odeio como você fala o nome dele, odeio os apelidos carinhosos que vocês trocaram.
Odeio as coisas que ele te diz. 

Naquela noite, naquela que você bem sabe,  eu ia te dizer que te amo.
Estávamos bêbados, no mesmo hotel.
Eu, menos bêbado do que gostaria, você toda sorridente.
Estava tentando criar coragem, achar coragem no fundo de uma garrafa.
Você cheirava a sabonete.
Seu rosto, suas mãos a um toque de distância.
Eu tinha fantasiado várias vezes, eu tinha o discurso na ponta da língua.
Paramos na porta do seu quarto.
Você me olhou. Como se soubesse, como se, talvez, quem sabe, quisesse...?
Eu queria dizer.
Mas eu não disse.
Eu nunca vou entender o que houve. Quero dizer, houve tanta coisa. Tanta gente.
Então, você disse "Boa noite".
Eu não dormi aquela noite. Meu coração parecia que ia sair pela boca. Minha mente correndo veloz, gritando que eu batesse na porta do seu quarto, feito uma cena de comédia romântica, daquelas que você tanto aprecia.
Eu devia ter batido.
Eu devia ter te beijado com toda a intensidade do que eu sinto. 

Perdi a oportunidade.
Essa e outras tantas, incontáveis.
Um oceano entre a sua boca e a minha.
E, agora, eu me sinto extremamente sozinho. 

Ainda sonho com você. Noite e dia. Enquanto dirijo pra casa depois do trabalho.
Quando estou correndo no parque.
Quando despelo uma laranja.
Quando ouço a nossa música, aquela que você desconhece.
Sinto vontade de sair correndo, fugir, a toda velocidade, dessa obsessão que você se tornou, da vontade de te ter pra mim.
Talvez você nem exista. Talvez eu esteja apaixonado pela versão de você que criei na minha cabeça. 

Não daria certo, certo?
Quero dizer, você quer romance, longas caminhadas na praia ao luar, de mãos dadas.
Eu quero sombra, aconchego, sexo, pedir comida e comer no chão, quero ficar nu com você por dias a fio.
Você quer sair, ir a cafés, discutir política e justiça social.
Eu só quero ir ao cinema e decorar as curvas do seu corpo, eu não quero saber de filosofia, eu quero saber de poesia e teatro, da sua língua dentro da minha boca,
você quer dançar lento na cozinha, e eu quero cozinhar pra você, escovar os dentes pra te beijar de novo e de novo e de novo. 

Dane-se! Eu quero o que você quiser.
Diga sim agora, e eu te busco em casa em algumas horas, eu te levo pra onde você quiser ir,
vamos ver o nascer do sol e fazer bruxarias sob a lua negra.
Feitiços de amor e morte, e você pode me sacrificar nas fogueiras quando tudo acabar.
Sei que soa como maluquice, mas eu preciso escrever sem pensar muito sobre tudo.
Sei que você nunca vai ler, sei que nunca vai saber.
Então eu preciso dizer, eu preciso colocar no mundo que eu largaria o que estou fazendo agora pra ficar com você.
E isso me deixa enfurecido, ensandecido, porque eu sei que não tenho a coragem necessária.
Se eu tivesse--

Eu amo como você se importa. Mesmo que finja que não.
Você é uma boa pessoa.
As pessoas tem sorte por ter você perto delas. 

Eu estou exausto. Mentir cansa. Tem sido cansativo, todos esses anos.
Eu te amo, e tenho te odiado, e me odiado.
É um limiar tênue.
Eu não quero brigar, eu não quero me afastar, mas eu não consigo mais ficar perto.
Lembro-me desse dia, muito tempo atrás.
Eu toquei você e você encolheu. Um choque, eu senti como se meu corpo todo estivesse aceso, elétrico.
Como se eu acordasse.
E, então, você se afastou. Tenho andado por aí feito um sonâmbulo, desde então.
A espera de um toque, uma palavra, um sinal. 

Eu não quero ficar só.
Eu quero ficar com você.
Mas eu não posso, entende? Se pudesse ler isso, se pudesse entender toda essa bagunça, toda essa insanidade.
Eu quero que você fique bem e eu não sou uma boa pessoa.
Eu quero que você seja feliz. 

E eu quero ser feliz com você.
Mas eu não sei se consigo. 

Eu não acho que consigo. 

Talvez,
um dia?

Se não for tarde demais,
quem sabe?

46x17 Amoral gods at the end of time

 

Imagem: TingTing Huang

Penteio meu cabelo olhando no espelho do outro lado do quarto, sentada na beira da cama desarrumada. 

Estou velha. 

Cabelos brancos, pequenas rugas espalhadas pelo rosto, que nenhum procedimento estético ainda foi capaz de ocultar. 

Estou velha demais pra isso? 

Ouço-o no banho, seu assobio curto, fora do ritmo. 

Estamos velhos, estamos todos velhos. 

Já passa das 10h, Gabriela deve estar acordada em casa, alerta, me esperando pra levá-la à aula de dança.

Ela já tem 10 anos. 

Às vezes, me pergunta onde passei a noite.
Tento não mentir, mas não sei se é hora de dizer a verdade.
E o que é a verdade? Qual é a verdade? 

Eu não me lembro exatamente quando foi que me apaixonei irremediavelmente por Pedro.
Um dia, acordei assim, como num episódio psicótico de início súbito, sem histórico prévio.
Era recém-casada, então.
Só me lembro da tristeza, da confusão e da angústia.
Das centenas de tentativas vãs de entender quem eu amava mais: Pedro ou Edgar.
Eu me lembro da incerteza, do vazio, da saudade de Pedro.
Lembro do pavor de me separar de Edgar.
De tantas decisões erradas, tomadas por medo do que iriam dizer sobre mim.

Lembro de perceber, finalmente, que não era nem um, nem outro: que eu queria ficar com ambos. 

Com o calor amável e aconchegante de Edgar. Com seu sorriso, sua maturidade, sua inteligência.
E com a solidão de Pedro, sua paixão, seus segredos.
Eu queria tudo e ninguém podia me convencer de que não se podia ter tudo. 

Capengamos. 

Discussões infinitas sobre nós, sobre amor e posse, monogamia. 

Fiquei com os dois, ou acho que sim. 

Não foi perfeito. 

Ninguém me disse como fazer, ninguém nos ensinou como agir. 

Só agimos. 

Às vezes, tenho a impressão de que ainda acham, mesmo após todos esses anos, que Pedro não passa de um capricho meu.
Um hábito vergonhoso, um vício.
Se ele também sente isso, não sei, ele não fala. Nunca fala.
O mesmo Pedro, imponente, taciturno, uma criatura de hábitos. 

Volto pra casa, e Edgar já não me encara desconfiado.
Parece sempre cansado, sempre cheio de coisas pra contar, opiniões pra desfiar, um beijo no canto da boca.
Quer passear no parque, quer ir ao cinema de mãos dadas.
Quer mostrar pro mundo que eu sou mais sua.
Mesmo sabendo que não pertenço a ninguém, só a mim mesma. 

Um dia, minha menstruação atrasou.
Esperei semanas até que descesse, em negação.
Tive tanto medo.
Tínhamos acabado de alinhar nossa rotina, só agora Edgar parecia mais receptivo à presença de Pedro em nossas vidas.
Pedro e eu recentemente tinhamos começado a fazer planos.
E agora, isso.
Um bebê.
De quem?
Dá pra dividir uma criança como se divide um romance? 

Gabriela nasceu prematura.
34 semanas e 5 dias.
E eu a amei. De um jeito diferente que eu nem sabia que existia.
Eu a amei e temi por ela, temi por eles.
Tive medo de que a rejeitassem por ser minha, por ser nossa, por estar no meio da bagunça que eu havia criado.

Pedro farejou Gabriela como quem fareja um objeto desconhecido. Olhava pra ela desconfiado, arredio. Levou um tempo, mas ele logo estava contando e recontando seus dedinhos miúdos, em silêncio, sorumbático.
Edgar chorou. Passava tanto tempo perto dela, queria falar com ela, queria vê-la, queria cuidar dela o tempo inteiro, selvagem, feroz, protetor.
Não sabíamos, à época, mas era quase como se ele soubesse.
São idênticos. Mesmo rosto, mesmo nariz, mesma boca, mesmos olhos. Riem igual, falam igual, dormem igual.
Aos poucos, ele foi tomando pra si o que já sabia que era seu.
E Pedro foi passando ao cargo de tio que traz presentes no Natal e no aniversário. 

Pedro nunca se casou.
Nunca falamos sobre o assunto.
Ele saiu com outras mulheres, lá atrás. Eu nunca me senti no direito de impor limites.
Aos poucos, ele pareceu se resignar.
Não falamos sobre filhos, sobre casamento. Apenas sobre o hoje, o agora, grudo em seu corpo numa prece pra que ele seja feliz. 
Pra que ele esteja feliz. 

Edgar quer mais um filho.
Fantasiamos, antes de dormir, sobre um bebê novo, uma casa maior, talvez outro gato.
Seria bom.
Talvez.
Abraço meu marido no escuro, e ele me diz que me ama. Que coisa boa de se ouvir, e de dizer. 

Estou velha.
Penteio os cabelos escuros da minha filha, e ela me pergunta se eu estou apaixonada.
Digo que sim.
"Pelo meu pai?"
Reflito, por um instante, antes de responder.
"Também", eu respondo.
E parece mais do que suficiente, ela acena com a cabeça. 

Queria que essa história tivesse um fim, uma moral.
Queria entender o que ela significa.
Pra mim, pra nós.
Mas eu acho que a escrevi justamente porque ela não tem. Porque eu não quero que tenha.
Porque eu acredito - ou quero acreditar - que nem tudo na vida precisa fazer sentido, ter explicação, seguir um padrão.

Só isso, mais nada. 

46x16 The floor is acute mania

 

Imagem: TingTing Huang

Boca seca, bebo água, copo meio cheio, metade água, metade medo. 

Surgiu aqui, na minha mente, solo fértil e não faço questão da rima, brotou uma semente, 
floriu um pensamento ácido e sombrio, feito o eu que você ama no escuro. 

Como se esse eu da penumbra visse a luz do dia, finalmente, de dentro de mim. 

Uma fera acuada, mas não enjaulada. 

Acorda e vê o mundo, pela primeira vez, em silêncio. 
Uma miríade de sons, cores, dores, o cheiro de

Ela cora, confusa, milhões de informações em um segundo. Circulando aos pares, 
um beijo,
uma  cor,
uma cidade, uma dor, 
um homem. 

Em círculos, cirandas, voltas rápidas e inodoras, 
1, 2, mil voltas. 

E eu aqui, eu agora, eu presente, passado e futuro, 
tudo numa só, 
eu me lembro de já ter me sentido assim. 

Também me lembro de não me sentir assim, 
e eu nunca mais quero nada diferente disso. 

Eu sinto como se tivesse ainda 20 e poucos anos, e fizesse frio, um tempo nublado, e brasília tivesse cheiro de nuvem.
Como se eu tivesse alguém pra olhar e sua mão pra segurar depois da aula. 

Como se essa sensação pudesse salvar o mundo inteiro e ninguém mais precisasse sofrer. 

E eu juro, eu não vou dormir, 
eu vou ficar acordada, eu não preciso dormir, 
até você voltar, até tudo se encaixar, até 

até tudo parar de girar.

Não me deixe sozinha hoje, 
não hoje, 
falta pouco.

Eu posso sentir. 

Early Cuts: All of you, some of you, none of you

 

Imagem: TingTing Huang

Noite passada, sonhei com você. 

Com você não-você, a sensação sem corpo que toma forma de figura sem rosto no centro do universo do Id. 

Sonhei com a coisa disforme que não tem nome, nem cheiro, nem cor
nem sombra, nem
Inorgânico

Somatizo. 
Sinto queimar o peito, parece até que- 
Não.
Não parece. Parece que

Então o que é?

Que nome tem essa vontade presa nos confins da mente, na memória dos ossos e das mãos. 

46x15 Maze Runners

 

Imagem: TingTing Huang

Encosto a caneta no papel e minha mente fica automaticamente vazia. 

Eu não me sinto vazia, me sinto derramando. 

Caminho pelo labirinto. Às vezes, é dia. Às vezes, é noite. às vezes, um meio termo, sem nunca passar pelo mesmo lugar duas vezes. 

Ou, talvez, sem jamais ser a mesma pessoa passando pelo mesmo lugar duas vezes. 
Complicado. 

Vou deixando migalhas, que os pássaros e as pessoas comem, me perco, 

Feito Ariadne, ou era Medeia?, ou eu sou Medéia, nem me lembro, desfio as roupas e amarro pelos galhos, deixo um rastro de fios pra trazer de volta alguém que já foi embora. 

(Às vezes, tenho a impressão de estar vivendo a história toda ao contrário. Não era pra eu estar lá fora? Quem é o herói dessa história, tô entrando ou tô saindo?)

Já nem me lembro. 

De vez em nunca, até me pergunto, olhando meus cascos brilhantes, patas peludas, se---
Não. 

Sacudo a cabeça, como se a ideia fosse uma mosca a fazer zoada no ouvido. 

Pra onde ir? 

Estou saindo, estou chegando. 
Onde fica o meu lar? 

Minha respiração solitária vai se adensando, quase um pequeno fantasma de névoa, uma companhia. 

Sinto falta da voz de alguém. Há meses, meses que não ouço, 1 ano já. Tudo agora me parece tão vago, cinza. 

Na minha mente, a voz de minha mãe, a bênção, o cheiro do ar e do mar. 
Sinto que andei tanto, que me distanciei tanto do centro, meu coração bate na goela, rápido. 

Sinto o gosto do meu sangue, o gosto do sangue de homens e mulheres que se sacrificaram pela minha divindade, pela minha sobrevivência. Eu os honro sob a lua negra, e sigo em frente, rasgo meus braços na sebe crescida, os galhinhos puxando meus cabelos e ricocheteando no meu rosto. 

Corro. 

Eu sinto como se pudesse sair voando, eu sinto o gosto do sal, eu sinto a textura da pele, da carne, eu sinto o cheiro do útero da minha mãe, eu sinto como se nada, absolutamente nada, pudesse me derrotar, eu sinto como se fosse eu a dona do meu próprio destino. 

Então eu corro, e corro e corro até

Antes de vê-lo, eu sinto o seu cheiro, de suor salgado, jasmim e menta. Eu ouço sua túnica e seus sapatos em contato com a pele, eu sinto sua hesitação pulsando nas minhas veias. Eu sinto o cheiro do seu medo, azedo. Ouço seu coração bater rápido como o de um beija-flor. 

Instintivamente, eu me escondo nas sombras pra vê-lo melhor, prendo a respiração. 

E ele aparece, parcialmente iluminado pela lua negra. Um homem, mas diferente. Empunhando uma espada e uma bola de fios carmesim, que brilha, pulsa. 

Um herói.

Um herói, como os das histórias dos homens, enviado pelo Pai pra me libertar das correntes do centro desse labirinto infernal. 
Um herói, pra me reconduzir ao trono. 

Quero avançar na direção dele, mas paraliso. Não consigo me mover, não consigo ir até ele. 
Não sei o que é isso que estou sentindo, mas espero um momento, um segundo, inundada por algo que nunca senti antes, que nem sei se sei nomear,

meu corpo todo, eletrificado, 
alerta, 
os pelos eriçados
coração explodindo no peito
vontade de correr e gritar

Ele se aproxima e eu só tenho um segundo pra decidir

se é amor ou medo,

antes que tudo se dê como era de se esperar. 


46x14 Manic Pixie Dream Girl


 Imagem: TingTing Huang

Acordei dentro de você.
Que loucura!

Dentro de você tem agora um pouco de mim. 

Eu sempre quis morar dentro de você, abraçar seus pensamentos, ver o mundo pelos seus olhos escuros. 

Queria te ver despenteado, desperfumado. 

Tridimensional, pernas nuas e o lençol ainda desfeito. 

Eu queria te ver tomar café sozinho, sem ninguém pra te olhar. 

Quem é você quando é só você? 
Em que você pensa, o que você sabe, o que você quer dizer, 
o que você sente, manic pixie dream boy? 

Quem você é fora da minha fantasia? 
Que gosto a sua boca tem quando você não está nos meus sonhos? 
Eu estou nos seus? 

No que você pensa quando não pensa em mim, na minha boca, na minha vida, quando eu não sou o centro do seu universo - se é que eu sou, mas como poderia não ser? 

Manic pixie dream boy, por que às vezes parece ser tão silencioso e escuro dentro de você? 
Não era pra ser tudo colorido, não era pra ser tudo uma repetição de imagens e momentos de nós dois, meu cheiro e a vontade do meu beijo com gosto de álcool e açúcar? 

Como você ousa, Manic pixie dream boy, ser mais do que uma fantasia? 

Ter ideias, interesses, opiniões, saudades, uma história patológica prévia, zero interesse em política e filosofia, e religião, e literatura e

em mim. 

Como você ousa, Manic Pixie Dream Boy, ser real, 
ser humano, 

não ser meu? 

Early Cuts: Save yourself

 

Imagem: TingTing Huang

Tenho pensado em quem é a mulher no espelho. 

Qual é a sua cor? E a cor dos seus olhos, 
a cor dos seus sonhos, 
A mulher no espelho, ela sonha? 

Eu me sento e ela se senta para tomar um chá quente e escuro, 
no fim da tarde. 
Gosta de mate. 
Gosto de muitas coisas pequenas e justas e com texturas ásperas e temperatura marcante. 

Sinto a necessidade de entender quem eu sou dentro e fora do mundo do espelho. 
Se eu sou muito ou sou pouco. 

Perco ainda as palavras, eu não sou mais quem eu era, eu não sou mais quem eu sou, eu não sou mais quem

mas, quem? 

Tenho dores imensas e profundas, nas costas, nos dedos, nos olhos, nos receptores. 
E nada faz passar, nada faz melhorar. 

Olhei um homem pela janela e foi a primeira vez que vi alguém que não era eu.

E que era eu. 

46x13 Cila

 

Imagem: TingTing Huang

Besta em guarda, anda pelos corredores de um castelo submerso, carregando um molho de chaves, flutuando, sob a luz do luar. 

Às vezes, ela se veste, às vezes, flutua nua, de corredor em corredor. 

Para em frente a cada porta, confere a tranca, retranca, 01, 02, 03 voltas de chave. 
Nunca entra, nunca dorme, nunca come. 

Só tranca, Cila, sempre fecha uma por uma e, depois que termina, volta a fechar. 

Noite alta, água morna, Cila passa, trancando, 01, 02, 03 voltas de chave. Tranca portas há muito emperradas. 

No fim do corredor, uma réstia de luz nova. 
Cila gela. 
Corre-flutua, o molho de chaves balançando preguiçoso em sua mão. 
Anda-corre pelo chão de madeira morta até chegar bem perto da porta recém destrancada. 

Puxa forte a maçaneta pra si, e ela não cede. 

Puxa, puxa, puxa, tensiona os pés, o pescoço, puxa com todo o corpo, uma força de leviatã, até fechar. 
E tranca, 01, 02, 03 voltas de chave. 

Pronto. 
Tudo certo. 

Suspira, assustada, por um instante.

Depois, volta ao trabalho, 
e tranca
e tranca
e tranca. 

Early Cuts: Fire walk within me

 

Imagem: TingTing Huang

Caro Otto, 

olá. 

Como vai você? 

Nossa comunicação vai ficando cada vez mais escassa. Às vezes, acho que passou, que você é apenas aquele chiclete que eu gostava, mas que teima em voltar à moda. 

Já não estou em chamas. 
Apagou-se o fogo. 
Tem caos, dentro e fora de mim. 
Uma chuva de cinzas, ininterrupta. 

Às vezes, parece que nada cresce aqui, não tem espaço para crescer, pra plantar, pra florescer, enquanto não parar de chover cinza. 

Sonho desordenado, não entendo. 
A borra do chá só me diz que não. 

46x12 Through the silence of our camp at night

 

Imagem: TingTing Huang

Tô contando os carros, um por um. 

Se passa um carro agora, lá em cima, então você me ama. 

Passa um carro, zunindo, no último cruzamento, veloz. 

Há que se pensar e há que se decidir. 

Talvez, nem tenha sido um carro, sabemos que as minhas vistas não andam lá essas coisas... Podia muito bem ser o caminhão do lixo, potente e simbólico, levando embora o sentimento fugaz induzido por tortillas. 

Talvez o caminhão seja o próprio tempo, o mundo, eu e você. 

Tô assim agora, perdão. Metida a interpretação de sonhos, fatos históricos, carros. 

Tô interpretando tudo, menos você, menos eu. 

Analisando incessantemente a inflexão da sua voz, aquela coisa que você fez ao rir, a inclinação da sua caligrafia, a pausa, idas e vindas e letras na tela. 

Parece que, um dia desses, não faz muito tempo, estava apaixonada por você. 
Era e tinha que ser você. 

Quando eu bebia água, ou chá, ou esse restinho de cor quando o sol se põe ou essa casa imensa e escura no canto do universo, na qual eu resido agora, calmaria, delírio cristalizado, respiro, incerta, como quem adquire um certo insight. 

Você me ama? 

Eu não sei. E preciso que você diga, que você grite. 

Porque eu não posso adivinhar, eu não posso apelar para carros e estrelas, horóscopo e tarô. 

Eu não quero. 

Eu quero ouvir você dizer, em alto e bom som. 

Eu quero te ouvir daqui, do terceiro andar, com a casa fechada, quero que ecoe pela rua azul. 

Eu amo você? 

Às vezes, eu questiono. Tento até duvidar,
mas sim. 

Sim, eu amo. 

Um observador incauto me pergunta se você sabe, com certeza. 

Respondo que não. 

Será que você também quer ouvir daí? 

Em alto e bom som? 

Talvez eu grite. 

Ou, mais provável, talvez eu fique em silêncio até a manhã chegar. 

46x11 To kill a mockingbird

 

Imagem: TingTing Huang

Silêncio, mas não do tipo bom. 

Silêncio demais, dentro do quarto, na sala no jardim enorme, interno. 

Por um instante, ela se perguntou se estava mesmo viva. 

Palpou o pulso no pescoço magro, batendo no dedo, tum tá. 

Tinha sangue nas veias, a pressão adequada, um músculo pulsante, eletrizado, sinapses piscando sem ruído algum em meio à tarde quente de janeiro. 

Dentro dela, um turbilhão de células, neurotransmissores, segundos-mensageiros, um liga-desliga insistente, até irritante. 

Tinha vida ali. 

No entanto, todavia -

Sentiu dor. Uma fisgada no céu da boca. Dor. Outrora lancinante, intensa. Agora, só dor. 

Correu a pegar o comprimido e colocou sobre a língua úmida, foi chupando como se fosse bala, sentindo o gosto amargo até o fim. Nem tinha ainda acabado de derreter e já se sentia melhor. 

No que era mesmo que estivera pensando? 
Ah, sim. 

Paro, na frente do espelho e examino meu rosto sem vaidade, digo a mim mesma, vaidade pra quê? 

Pra quem? 

Eu sou mesmo uma mulher partida em pedaços. 42. Um número cabalístico. 42 pedaços, talvez. Eu pauso, pra me ajuntar, mas não tenho como colar o que sobrou. 
Faltam peças, tantos pedaços, o septo e palato, ossos e células boas, bem feitas, receptores bem postos. 

Mãos pálidas, dedos artríticos, a mil anos luz de quem eu realmente fui. 

Uma artista. 

O substantivo me machuca feito um soco que levei entre as costelas, machuca feito traição. 

Artista. 

Eu fui, eu sou. Eu era. 

Agora, estou. Eu não sou nada. 

Silencio a dor com mais um comprimido amargo a derreter. 
Conto comprimidos. 
Um pra dor, 
outro pra outra dor. E mais essa e aquela. 

Manhã, tarde e noite passam feito a memória dos sussurros de velhos amantes, gélidas e cinzentas, fugazes, nubladas. 

E mais um dia e outro. 

Ouço um pássaro cantar. Longe, bem longe. 
Dentro de mim. 

Há muito tempo que não o ouvia. 

Fecho os olhos e aprecio a melodia. 
Talvez, seja a última vez. 

Espero que seja a última vez. 

46x10 Estrabismo e outras tempestades

 

Imagem: TingTing Huang

Vou te contar um segredo, um que eu nem mesmo sei. 

(Tapo um pouco os olhos com as costas da mão. A luz no seu ombro incomoda meus olhos, sabe? Meus óculos não tem lentes antirreflexo)

O que eu tô tentando dizer é bem simples, na verdade. Mas, ao mesmo tempo, é complicado. 

Tem a ver, como tudo na vida, com a minha mãe. Não, na verdade, talvez com o meu pai. 

Quero dizer, tem o bigode, as laranjas e um cheiro peculiar de toalha molhada, critérios de um DSM que ainda nem sequer foi escrito, critérios nos quais você não se encaixa. 

Ele gostava de discursos, de política, de gente. 

E eu gosto de brigadeiro branco, cogumelos e desse devaneio que tenho com a sua boca.

Olha, não me leve a mal, eu estou tentando te contar que 

Eu não me lembro direito, mas sei que tem a ver com a forma como meu coração parece sair pela boca quando você chega, ou com meus atos falhos, ou com minha dificuldade imensa de controlar esse impulso que sinto de te dizer o que me vem à cabeça, a sensação de me afogar no silêncio entre a gente. Tem a ver com a vontade de tocar a sua mão e a sensação rascante de que eu vou morrer se não invadir seu espaço pessoal no meio da noite. 

Sabe, eu não sei do que se trata isso tudo, mas talvez tenha a ver com a sensação de que vou enlouquecer longe de você e perto de você também, ou talvez isso também já seja parte de um quadro psicótico. Não sei, pode até ser. 

Eu quero te falar que tem essa coisa, essa alguma coisa, que eu quero saber o que é, que eu te analiso inteiro e procuro dentro e fora, que eu quero arrancar ou quero, que eu nem sei o que eu quero. 

O que eu quero te explicar é que você faz chover dentro de mim, transborda tudo, destrói o que eu tenho de meu, de seguro, de certo, escorre feito cera de vela acesa pra dentro dos meus sonhos, dos meus dias bons, contamina tudo e eu nem sei mais como tenho conseguido silenciar o animal que ruge seu nome. 

Tô aqui contando carros na varanda e pensando se isso mata, se se morre disso,

vontade. 

Se der pra morrer de vontade, 
meus dias estão contados. 

46x09 The fire that I started in me

 

Imagem: TingTing Huang

"Eu me sinto -- como uma pira funerária acesa na chuva (...) uma fogueira na chuva"

E se eu te disser
Sim
?

É quase madrugada, o que quer que isso queira dizer. Não é tarde demais pra dormir, mas também não é cedo. 
É quase. 

Aqui dentro eu juntei tudo, folhas secas de cadernos e diários com teu nome, e gravetos, mil gravetos como em um livro que li uma vez, gravetos com teu nome gravado, carvão, ervas perfumadas, tecidos, combustível que roubei do tanque do seu carro, do meu carro. Tanta coisa pequena, inflamável, uma pilha enorme de desenhos, livros, lembretes, letras, letras, letras e mensagens confusas. 

Pra acender uma fogueira enorme, gigantesca. 

Veio a chuva de verão, dessas chuvas fugazes, intensas, que molham os amantes em filmes, que deixam o vestido branco e florido da mocinha quase transparente, grudado no corpo prestes a ser beijado e acariciado, molhou tudo. 

Mas eu esperei, pacientemente, até secar. 

E agora, é hora de acender. Acender e queimar. Hoje, não esqueci o isqueiro. Nem álcool. Tudo certo, tudo pronto, tudo limpo. Chego perto, e é hora de acender a pira e queimar --

Queimar o quê? 

Eu tô pronta. Tenho o fogo que falta, a centelha, eu tô pronta pra queimar. Mas eu não sei mais o que queimar. Eu não sei se essa é a grande pira funerária do nós que é, do nós que nunca foi. Se é uma fogueira pra fazer sinais de fumaça e te fazer entender como eu me sinto. 

Eu não sei o que eu quero tanto queimar, eu só sei que eu quero acender, eu quero ver o fogo, eu quero sentir calor. 
Eu tô cansada de sentir frio. 

Mas eu também sinto medo de desperdiçar tudo isso, todo esse tempo, só pra ver, por uns segundos, as chamas coloridas transformando tudo em cinza. 

Eu quero acender. Eu quero queimar. 

Mas é cedo, ainda. 
Eu preciso de tempo. 

Preciso de mais tempo. 

46x08 Pharaoh, risen

 

Imagem: TingTing Huang

Acordo com seus gritos. 

Na verdade, nem sei se dormi. Às vezes, sinto que não durmo nunca, que estou sempre alerta, vigiando, olhos abertos ou fechados, corpo e mente, todo o meu espírito e a água do Nilo que corre no meu corpo, ao contrário. Sempre em guarda, à espera. 

Abro as portas e adentro os aposentos escuros do grande Sol. 

Passa pela minha mente o seguinte pensamento "A noite é mais poderosa do que o Sol". Mesmo agora, desperto, ele está no escuro, indefeso. 

A chama da vela que carrego tremula, e eu temo que se apague. 
Às vezes, confesso, tenho medo dele. Dos seus sonhos, dos seus gritos. 

Todos tem medo dele. 
Exceto a rainha, sua mãe. Ela não tem medo de nada. 

Silêncio no quarto. Cheia de medo, me aproximo da cama enorme e dourada. 
Ali, em meio às cobertas, a chama da vela ilumina o rosto assustado de um menino. 

Eu sempre me esqueço e me assusto ao vê-lo. 
Um rei, um deus, um homem: um menino. 

Ele não fala nada, não me conta mais os detalhes. Há muito, ele já não fala mais dos sonhos, do dilúvio, Ísis, um homem elefante, um homem crucificado e a mulher com muitos braços. Mil vidas, mil mortes e uma noite de mil dias. Um dia, ele me contou, em segredo, como eu iria morrer. 

Ele se arrependera, pouco depois, mas era tarde demais. Agora, eu já sofria da mesma doença de meu pai, eu já tentava desesperadamente escapar da morte e definhava a cada dia, por senti-la próxima. 

Sem dizer uma palavra, eu encostei meu rosto no rosto dele, testa contra testa, olhos fechados, murmurei uma prece para espantar os sonhos ruins. Uma prece antiga, com a qual eu também sonhei um dia, capaz de varrer pra longe a tríade de deuses que sopram nos ouvidos, a certeza solitária de que o mundo em que vivemos fica na junção entre todos os tempos, no ponto central de todos os universos que são, que foram, que serão. 

E eu cuspo palavras mágicas, capazes de antagonizar dopamina, até você tremer, boca e mãos, até seu corpo todo travar, até que você durma. 

Um sono profundo, sem sonhos, sem mágica.
Sem medos. 

Até o efeito passar. 

46x07 'Til forever falls apart

 

Imagem: TingTing Huang

Eu amo você, e eu não quero dormir essa noite. Quero uma noite, só essa noite. Uma noite longa, que dure muitos e muitos dias, quero te ler uma história tão longa que você a ouça por um período equivalente a 1001 noites. 

Vamos não dormir, hoje não. Essa noite não. 

Vamos ler um pro outro, e ver todas as séries abandonadas pela metade. 

Vamos, essa noite, contar todos os segredos e resolver todos os dilemas morais, vamos explorar nossos inconscientes, vamos fazer todos os planos virarem realidade. 

Vem, mas tem que ser agora, tem que ser essa noite, vamos fugir. Vamos pra bem longe, comer doce, andar de mãos dadas, vamos fazer um filho, vê-lo nascer e crescer essa noite, vamos envelhecer juntos. 

Vamos ser padrinho e madrinha das crianças nascidas em todo o estado, ler todas as histórias e ver todos os filmes de amor. 

Vamos não dormir, 
vamos nos amar com pressa, com intensidade, como se essa fosse a última noite,

porque talvez seja. 

46x06 A witch and a knight walk into a bar

 

Imagem: TingTing Huang

Estamos sentados, cada um com a sua cerveja. 

Eu, já bêbada, mas nem tanto. Só o suficiente pra estar zonza e feliz, rir alto de tudo o que você diz, passar mais segundos do que deveria olhando pras suas sobrancelhas, seus dentes, e seu pescoço. Não estou bêbada o suficiente, não tanto quanto eu gostaria de estar. 

E você -- você nada. Sempre, sempre nada. 
Sinto aquela vontade, infelizmente controlável, absurda, de dizer:

- Você não sabe, não faz ideia, do que você faz com a minha cabeça. Do efeito que você causa em mim. 

Eu diria isso olhando nos teus olhos, imagino, e você ficaria apenas momentaneamente desconcertado. 
Considero, calmamente, causar o seu desequilíbrio, enquanto tomo mais um gole. 
Mas não. 

"O que você faz com a minha cabeça". 
tolice. 
Como se você, só um homem, pudesse fazer algo com a minha cabeça. 

Eu sou a feiticeira verde, eu dou poder e o tiro. Eu tenho o poder de fazer queimar, chover, de adormecer os homens e acordar as mulheres.
Eu, não você. 
Seu poder sobre mim é o poder que eu te dou. 
Não é seu, e eu o quero de volta. 

Sou eu, a de muitos nomes, eu sou o espírito da água, eu sou a rainha de mil faces, eu transformo homens em porcos, só eu sei os segredos dos cervos e das fogueiras de Beltane. 

Eu sou a mãe de Édipo, sou a que chora a morte após tirar a vida. Sou eu quem habita as sombras dos desejos no seu coração, sou o som dos seus sonhos e aquela que chama o seu nome nos ruídos das primeiras horas da manhã. 

Eu te dou o meu amor, e você, você me dá tudo, sem saber o que existe no final. 

Eu sinto em você, o cheiro de morte, juras de amor, aventuras, terra molhada de sangue e metal, saliva e suor. Uvas e framboesas. 
E eu sei, eu sei. Você também sente o cheiro. 
Grãos, sangue, incenso, chuva, fumaça, sacrifícios. Uvas e framboesas. 

Bebemos. 
Você espera -- pelo quê?
Eu espero, pacientemente, aquele momento em que você me olha nos olhos e diz

- Você não sabe, não faz ideia, do que você faz com a minha cabeça. Do efeito que você causa em mim.


Esperamos, em guerra. 

Alguém tem que ceder, 
certo?

46x05 Queen of cups

 

Imagem: TingTing Huang


- Eu não sabia o que fazer. Eu só sabia que eu não sabia o que fazer.. Eu nem sei mais quem eu sou...

Sentada, no chão úmido da caverna, na penumbra, eu tento explicar, sem chorar tanto, mas nem eu entendo como vim parar aqui. Só sei que o som das tesouras e do tear me afligem e me acalmam, tão rápidos, tão perfeitamente sincronizados. 

- Eu preciso saber, Mãe. Eu preciso entender. Eu preciso saber quem sou. - mas a Mãe, ela não pode me ouvir. 
Seus dedos correm, velozes, tecendo sem parar, criando às cegas um desenho que ainda não consigo decifrar, que eu mal consigo ver, mesmo à meia luz. 

A luz vem da chama da vela que a Donzela segura firme, com as duas mãos. 
É através dela que eu consigo ver pequenas mudanças no ambiente, nos tons da tapeçaria, menos tons de cinza, mais cores brilhantes, verde musgo e pôr do sol, algumas silhuetas familiares.

Quase me distraio com as cores novas e deixo de ver Morta, em sua pequenez sombria, cortando fios em silêncio. Hoje, eu diria que ela realmente tem bilhões de anos. Frágil, exausta. 

A Donzela se aproxima de mim com a vela e o calor que ela emana, uma vela tão pequena, é quase insuportável. A luz incomoda meus olhos e quase não consigo abri-los. 
De pé, a Donzela tem quase o dobro da minha altura. Pernas longas, enormes, escondidas sobre um vestido escuro e dedos aracnídeos. Cabelos ruivos, lisos e igualmente longos. Ela se parece mesmo com um fantasma, o fantasma de alguma donzela de contos de fadas. 
Eu raramente vejo o seu rosto. Ela está quase sempre debruçada sobre a tapeçaria, sempre tecendo, sempre olhando, sempre sussurrando para si mesma ou cantando uma música que só ela conhece, mas que, eventualmente, ressoa nos meus sonhos. 

Mas não hoje. 

Hoje é a noite em que o sagrado deixa de ser secreto. 

- Venha - ela chama, e eu a sigo, em silêncio, com um pouco de receio, confesso. 

Ela me guia por um caminho amplo e escuro, com tapeçarias desbotadas que, ao serem iluminadas, magicamente retomam suas cores originais. 
E eu posso ver, de novo, o cinza e o amarelo, e as cores que eu nem me lembrava que existiam. 

Caminhamos em silêncio por alguns minutos, até parar em frente à tapeçaria que eu chamo, carinhosamente "Petrichor & spiders". 
E eu reconheço aquela cena, reconheço as cores e o cheiro de tecido, o frio, o amor, mas eu não sei mais me sentir assim. Ou, talvez, eu só saiba me sentir assim.

- Quem sou eu? - pergunto para a rua molhada, úmida e amarela. 
E a Donzela, ela responde, e eu sinto que a sua voz cresce em mim, dentro do meu coração, se é que isso é possível. 

- Você é alguém que perdeu a fé, que tem medo do amanhã. Você é aquela que tem medo de si mesma. Você sabe quem você é, criança, e tem medo dessa pessoa. 
Está negando e escondendo, mas eu vejo tudo que a luz ilumina e o que fica no escuro. Eu vejo o seu coração e eu vejo a dúvida. Eu vejo a solidão. 
E eu vejo um homem --

Ela sussurra, tão baixo que eu perco as palavras dentro de mim, escuro, trabalho, eu só não entendo, mas eu tento. 

Ela fala comigo e consigo mesma, murmura, suspira e grita, eu não consigo acompanhar.

- Antes, - ela diz - você controlava as suas emoções, você não deixava o medo tomar conta, você era disciplinada feito o homem, o homem na carruagem que esconde suas emoções e se defende atrás de esfinges e rasga o tecido dos seus sonhos e
Você quer o fim do conflito. Você quer tempos de paz. Mas você, meu amor, você é caos. Você usa o caos e a confusão. Você é o entrave. O que você quer?

- Eu quero... Eu quero ser feliz. 

- Não... Você não quer. Você tem medo de ser feliz. Sempre teve. - e então, ela começa a gritar, me assustando e fazendo meus pelos ficarem arrepiados - PARE DE LUTAR, PARE DE LUTAR. Você precisa esperar. E refletir. Existe amor, mas não agora, não. Não agora. Agora, você precisa entender quem você é. 
E você, você sabe a resposta, minha querida. Pense. Isso, pense. E ouça. 
Você está feliz? 
Pra onde, agora? 
Você sabe. Ouça. 

Fico em silêncio, eu me sinto mal. O calor da chama me causa desconforto, a luz me dá dor de cabeça. Ela volta a sussurrar e a gritar e eu me sinto cada vez pior. 

- Muitas preocupações, muito muito medo. Tão pessimista, você não é feliz ou você não quer ser feliz? NÃO. AGORA NÃO. Depois, quando passar, depois. Quando o sol se por. Eu sei, você não quer machucar ninguém. E não quer perder. 

- Donzela, eu não entendo. Eu não fiz nada... Eu só não sei o que fazer. 

- Oh. - ela pausa, por um instante, suspira. Quase parece que ela está exausta - Não minta. 
Tem muita tristeza a caminho. Hurricane, thunderstorm. 
Você conseguia controlar, por que não consegue mais? 
Você precisa acordar. Essas coisas, essa mágica que você conjura, ela cobra um preço, um sacrifício. 
você sabe disso. 
Mas já aconteceu antes. Tem que acontecer de novo. 

E, de novo, aquele tom. Como se eu fosse destruir tudo. 

- Por que? - eu questiono, mesmo sem entender - O que tem que acontecer de novo? Por que? O que eu faço pra não acontecer de novo? 

- Você fica. 

- Onde? Onde eu fico?

- Você só fica. E espera. As coisas. A vida. Está tudo aqui. Se você olhar com atenção, vai ver. 

E ela coloca uma das mãos na frente da chama, diminuindo a intensidade da luz. 

Eu consigo ver, agora. 
Ou acho que consigo, dessa vez. 


Espero. 

46x04 Multiverso

 

Imagem: TingTing Huang

Em algum lugar no universo, tem essa mulher. 

Eu não sei o que ela faz, eu não sei como ela é. Mas eu sei 

Eu sei que ela gosta de música, de cinema e de dar as mãos. 
Eu sei que ela dá muitas risadas e esconde a cabeça no seu ombro quando ri muito alto. O som da risada dela é engraçado. 

Eu sei que vocês ouvem música às vezes, no finalzinho da tarde. 
Eu sei que vocês tem uma música só de vocês, que não revelam pra ninguém. 
Sempre que toca, vocês se entreolham, onde quer que estejam. 

Eu sei que vocês são felizes. 
Eu sei sobre o primeiro beijo de vocês, na penumbra, ou na chuva, ou no seu carro, quando você estacionou pra deixá-la mais perto do carro dela. Na calçada. 

Eu sei que vocês tem uma linguagem secreta de sinais e que, às vezes, não precisam nem conversar pra saber no que o outro está pensando. 
Eu sei que você contou pra ela alguns segredos que nunca tinha contado pra ninguém. Morreu de medo, mas, depois, se sentiu tão mais leve. 

Eu sei que ela se sente insegura às vezes, fica com medo do que vai ser, se vocês vão mesmo ficar juntos pra sempre, pra sempre é tanto tempo.
Eu sei que você já se acostumou com o caos que ela deixa por onde passa. 
Eu sei que ela não tem tido mais pesadelos, desde que você começou a dormir em casa. 

Eu sei que ela acha que você cozinha melhor do que ela. 
Mas, também, eu sei que ela acha que tudo o que você faz é incrível, maravilhoso, perfeito e mágico.
Eu sei que ela pensa, secretamente, se vocês foram feitos um pro outro. 
Eu sei que ela pensa que vive em um filme romântico dos anos 90. 

Eu sei que ela gosta do seu cheiro, do cheiro que você deixa no carro e na casa. 
Eu sei que ela pensa o dia inteiro sobre as partes do seu corpo que ela ainda não decorou.
Eu sei que ela cria poemas sobre a textura da sua boca e o jeito como você beija

Eu sei que ela te adora, e adora o seu corpo e a sua voz e o jeito como você anuncia a sua chegada, tanto que às vezes ela até se assusta com essa intensidade. 
Eu sei que ela adora quando você ri alto, de um jeito inesperado.
Eu sei que ela odeia a sua ausência. 

Eu sei que ela se pergunta se é possível ficar sem você, e tem medo da resposta. 
Eu também teria medo. 

Eu também tenho medo da resposta. 

46x03 A friagem

 

Imagem: TingTing Huang

Deita.

Vento quente, sufocante, sua perna, seu corpo, quente, sua por baixo do tecido grosso. 

Estende os dedos e enrola, fio a fio, rápido, ligeiro. 

Por fora, dormente, atenta. 
Por dentro, a mulher é um turbilhão. 

Ventania gelada, sopra, congelando as veias, o estômago afunda, caos e

Para, respira. Tenta se concentrar em movimentos lentos e propositalmente curtos. Um balé, uma dança. 
Enrola os cabelos com os dedos. Não consegue não fazer algo. 

A angústia, a friagem interna avançam, inexoravelmente. 
Ela, em contrapartida, luta como pode, senta, deita perto do sol, queima os pés e enrola, enrola os fios até que se quebrem e caiam, murchos, no estofado escuro.

Dói feito pesadelo, mais do que os pesadelos até, porque não para, não passa. 
Aos poucos, ela sufoca, gelada por dentro, quente por fora. 

Sente a friagem consumir tudo, seus sonhos, a manhã, o conceito de cadeiras, a ideia de verdade, corta em pedaços quem ela quer ser. 
Agulhas geladas, perfurando o peito enquanto ela, como num ritual, enrola e enrola e enrola os cabelos. 

Ele, silêncio.

Ela, tempestade de verão, chuva fria na terra quente, inundando, lavando tudo.
Destruindo o que quer que esteja no caminho. 

46x02 Os donos dos corpos

 

Imagem: TingTing Huang

Essa mulher, ela se senta na minha frente, e ela me diz a melhor e a pior coisa de se ouvir:
ela me diz que vai me contar uma coisa que nunca contou a ninguém. 

E, ao mesmo tempo em que eu quero decifrar o enigma da esfinge, ao mesmo tempo em que eu quero desbravar os limites da mente e dizer que eu vi seu ego nu, que eu sei as cicatrizes da sua alma, 

eu não aguento mais nada. 

E, ainda assim, a despeito do meu pavor de que me dê uma história que eu nunca vou poder contar, ela conta. 

E eu entendo o porquê de essa mulher tão pequena e morena morrer um tanto todo dia. 
Porque agora eu também morro um pouco todo dia. 

Era uma vez amor,
quando um homem e uma mulher se amam, 
e ele também ama outras mulheres, 
mas nem foi aí o início da história. 

O início é antigo, milenar, alguém um dia deixou que os homens pensassem que eles são os donos dos corpos das mulheres. 
Que amor é um certificado de posse.

Enquanto ela me descrevia o sangue e a noite, a culpa e o arrependimento que só quem carrega por anos é que conhece, eu fiquei nauseada. 
Não é das histórias que me canso, eu me canso do mundo, eu me canso não de você, moça, nunca de você e da sua voz, eu me canso de existir em um mundo tão brutal e injusto, 
não, não, eu não tô exausta pelo seu sofrimento, eu estou cansada de ter que te ver resistir e carregar um peso que todo o escitalopram do mundo não tira, um vazio que esse depakene não vai preencher. 

Perdão. 

Eu queria poder fazer melhor, eu quero poder fazer melhor. 
Por mim, por você, por nós duas.
Por nós todas. 

Mas hoje, só hoje, o que eu tenho é isso: dois ouvidos, uma boca e a capacidade de guardar segredo. 

Serve?

46x01 E de Estupro

 

Imagem: TingTing Huang

Ela nem sequer conseguia dizer a palavra. 

Olhava pra mim com aqueles olhões enormes, azuis. 

E dizia "o que ele fez comigo", "fez aquilo", "forçou aquilo", "a mesma coisa da outra vez", "aconteceu de novo". 

E o tempo todo, no meu ouvido, uma voz ríspida gritando que eu a corrigisse. 

Eu, impassível, calada, ouvindo e ouvindo. 

Aquilo o quê?
O que foi que ele fez com você? 

E ela circulava, evitava a palavra como se o nome da coisa carregasse consigo o poder de trazer tudo de volta, como se dizer a palavra fosse 
Como se a palavra fosse a lembrança, como se a palavra fosse o homem no escuro, o peso do corpo e o cheiro 

Como se 7 letras a tivessem segurado de encontro ao chão. 
Como se 7 letras carregassem a culpa de tudo o que houve, e não eles.
7 letras e ela. E o nome dela. 

Todo o peso do mundo nas costas de uma pessoa tão pequena, de uma palavra tão pequena e tão apavorante, terrível, grotesca,
e só eu ali, tão pequena e crua e imatura, 
quem sou eu pra tirar o peso das costas de Atlas? 

Eu sou Ninguém. Ou, talvez, 
Ninguém seja quem eu quero ser. 

45x22 Happier than ever (Season finale)

 

Imagem: TingTing Huang

Fico me perguntando se você já foi mesmo feliz. 

Porque você parece feliz hoje, e eu nunca te vi assim. 

Você explica, gesticula, me conta e volta, diz coisas secretas e obscuras, e fala, pela primeira vez em eras, sobre a mulher que você amou. 
A mulher que te destruiu primeiro, ou pelo menos é isso o que você pensa, o que você sabe, o que você vê. 

Você diz que está livre, que está feliz, que está bem. 

E eu quero acreditar que isso é felicidade, que felicidade existe e não é só uma confusão química acontecendo no seu cérebro bem diante dos meus olhos. 
Eu quero acreditar que dá pra ser feliz assim, bem desse jeito, porque eu preciso acreditar em algo. 

Se eu pudesse acreditar em algo, acreditaria em você. 
Acredita que sua vida pode mudar em um piscar de olhos, acreditaria em amor e que existe cura pra gente profundamente triste e quebrada e vazia. 

E aí está você,
ainda de pé como um ator, e eu ouço o seu monólogo assombrada, com um pressentimento ruim, uma dor estranha no peito. 
Eu não quero que isso que você está sentindo tenha fim. 
Eu não quero que seja mentira.
Eu não quero que seja qualquer coisa além de felicidade pura, brilhante, furta-cor, transbordando. 

Eu quero ser feliz assim, eu quero que seja de verdade. 
Por favor, fique feliz de verdade. 
Por favor, esteja feliz. 
Por favor, esteja bem. 
Por favor, homem, menino, prove que existe. 

Eu preciso que exista. 

Eu quero ser feliz também. 


45x21 Teleborianism II

 

Imagem: TingTing Huang

Ela olhou nos meus olhos. 

Magra, parda, os olhos úmidos de chorar. Ela me pediu que a deixasse morrer. 

E eu, que já matei tanta gente, logo eu, disse que não. 

Ela argumentou, me jurou que já tinha feito de tudo. Jurou que já tinha aproveitado a vida, que 21 anos tinham sido mais do que suficientes. 

Ela me prometeu que lorazepam, clomipramina, amitriptilina e venlafaxina,
que seu problema não era a serotonina. Seu problema, ela afirmou, era a vida. 

A vida era muito. 
A vida era demais. 

Me deixa morrer

Ela jurou que não queria mais sentimentos, não queria viagens, nem cores, nem músicas, nem os filmes novos da Marvel, nem beijar alguém que você sempre amou, nem primeiros beijos, nem sexo, nem a dor de perder ou de ganhar. 

Ela me disse, por favor, acredite, eu fiz tudo o que me pediram, mas não melhora nunca. E eu não quero que melhore. 
Eu só quero que acabe. 

E eu, intrometida, 
invasiva, 
salvadora não requisitada, 
prometi mundos e fundos, prometi que o lítio, prometi que a quetamina, prometi preencher o vazio de uma vida com singelos 300mg. 

Na batalha entre a autonomia e a obrigação, 
quem venceu foi o tempo. 
Não eu, não ela. 

"Sinto muito", 
saiu da minha boca, sem controle, antes que eu pudesse sair correndo, sempre correndo, 
como se algo estivesse me perseguindo. 


45x20 Boyhood

 

Imagem: TingTing Huang

Manuel

Voz de mulher, como sussurro, voz soprada, quase musical, não sei explicar, só sei que é assim que é. 
Acordo no meu quarto, ou no meio da rua. 
Não sei se eu tô bem ou mal, sei que tô. 
E que tem um vento indo na minha direção. 
Depois do vento, a voz. Da voz, o vento. 

Paraliso, ouvindo o feitiço, a mágica soprada, a voz. Eu entendo, mas não falo essa língua. 

Moça preta vem, pega a minha mão, e eu tenho a impressão de que nos conhecemos há séculos, desde aquele tempo em que eu era só um velho, mas hoje eu sou só um menino. 
Ela, ela também já foi e é. 

Às vezes, até acho que tudo vai ficar bem. Aí vem
Ah, sim.
E êxtase, e medo e 
tudo faz sentido. 

Rui

Deus está sentado na minha cama, me olhando. 

É difícil começar a descrevê-lo. Mas posso tentar. 

Sinto muito, Deus não é uma mulher. Mas também, não sei se Deus é um homem. Quero dizer, Deus é Deus. 

Eu li em um livro, uma vez, mas não me lembro hoje. 

Ele está aqui porque tudo vai ficar bem. Porque eu estou bem. Porque todo mundo está bem. 

Sou inundado por uma sensação única e incrível e brilhante e 
algo irreal. 

Será que estou enlouquecendo? Quero dizer, não estou. Ele está aqui, eu posso vê-lo tão claro como--
Como cadeiras e mesas e 
Estou tão cansado, até meus pensamentos me cansam. 
Mas agora não, agora tudo vai ficar bem.
Deus está aqui agora. 
Tudo vai ficar bem. 
Eu sei que vai, 
eu tenho certeza de que vai, 
não vai? 


Lúcio

Onde?

Acordo de um sono de 100 anos, como a Bela Adormecida do Bosque, na história antiga. 

Queimo em febre e sinto vontade de chamar minha mãe. Mas não sei as palavras. Eu não sei mais tudo. Eu sei. 
Tem quem eu sou.
Tem onde estou. 
Tem homens e mulheres e nomes e datas e o lugar onde fica o banheiro. 
Tem o gosto da comida. 

E, ainda assim, eu sinto que caminho dentro de um sonho, através de um sonho, 
e onde chego depois? 

Fico parado na estrada onírica, me perguntando se hoje é mesmo hoje, mas sei quando e onde e mais um monte de coisas. Eu só não sei mais tudo. 
Nem sei se quero saber. 

Eu quero só aqui, só agora. 
Talvez até volte a dormir, se é que não estou dormindo, 
e acorde só daqui a outros 100 anos. 

Com ou sem beijo. 


45x19 When tomorrow comes

 

Imagem: TingTing Huang

Querido (amado, adorado) Otto,

olá. 
Como vai você? 

Gostaria de mentir, gostaria que fosse mentira, mas
não tenho pensado em você. 

Acho até que não tenho pensado.

Tentei um exercício, um velho velho exercício, aquela coisa que vivi muitas vidas atrás. 

(Penso em você quando despelo uma laranja, etc etc.)

Eu queria te escrever uma carta de amor. Mesmo não sabendo mais se ainda te amo. 
Quero dizer, eu te amo. 
Mas, você sabe,
Aqui vai.

Eu sinto a sua falta. Isso não é mentira. 
Quando ando de elevador, no frio e no calor, existe uma ausência, um vazio, palavras não ditas e o silêncio dos segredos sagrados das mulheres e dos padres. 
Sinto a sua falta, da maturidade que desconheço, dos seus dedos e do cheiro do seu couro cabeludo, mesmo quando nem sei. 

Afundo no sofá no meio da madrugada, insone, alerta - às vezes, eu espero ouvir a sua voz no apartamento silencioso, mesmo aqui, a quilômetros e universos de distância. 

Sinto falta do seu silêncio, suas cores. 

Elas não existem aqui, suas cores, Otto, elas são só suas. 

Se eu pudesse escolher um lugar do mundo pra me teletransportar, aqui, agora, por segundos que fossem, eu iria agora me sentar na sua frente em um café escuro, pra te ver comer sua fatia de torta sem prestar atenção a ela, girando o garfo entre os dedos enquanto mexe no celular, como quem tem ou quer ter todo o tempo só pra si. 

Eu quero te ver. 
Eu quero respostas, Otto. Sobre mim, sobre nós, quem sou eu e os mistérios do universo. 

Sinto que tô perdida e, sempre que me sinto assim, 
te encontro 
dentro de mim. 

Curioso, não? 

Fique bem. Fique vivo. 

Com amor, 

B.